terça-feira, maio 31, 2011

JOÃO PEREIRA COUTINHO - Os fantasmas de Clint Eastwood


Os fantasmas de Clint Eastwood
JOÃO PEREIRA COUTINHO 
FOLHA DE SÃO PAULO - 31/05/11

Se "Além da Vida", que a crítica desprezou, não é uma obra-prima do cinema atual, chore por mim, leitor


VALERÁ A pena ler críticas de cinema? Falo das críticas conceituadas de jornais conceituados. Tenho dúvidas.
Um exemplo: meses atrás, assisti a "Invictus", de Clint Eastwood. Não gostei.
Nelson Mandela pode ser figura importante na história sul-africana, mas, para santos, prefiro visitar a língua de santo Antônio, conservada numa redoma de vidro, na belíssima cidade de Pádua.
Quando Clint Eastwood dirigiu o filme seguinte, "Além da Vida", auscultei opiniões: antes de marchar para a sala, queria precaver-me de desilusões terminais.
Não há nada mais triste do que assistirmos à decadência de um diretor que admiramos. David Lynch, Francis Ford Coppola, Gus Van Sant -o meu cemitério é longo.
As críticas a "Além da Vida" eram piores do que imaginava. Nos Estados Unidos, havia uma mistura de compaixão e desânimo com Clint Eastwood. Na Inglaterra, o tom piorava: desprezo e mesmo sarcasmo.
Clint sucumbira a meditações espíritas e estava, numa palavra, acabado. Só os franceses salvavam a honra do convento. E, mesmo eles, com reservas.
Desisti de "Além da Vida" -como, admito, desisto de grande parte do cinema comercial em exibição nas salas.
Mas uma noite, em casa, alguém passou o filme em DVD. Abreviando: se "Além da Vida" não é uma obra-prima do cinema moderno, chore por mim, leitor. Sou eu quem está acabado.
Antes do enterro, porém, permita-me uma defesa.
"Além da Vida" centra-se na história de George, um operário americano que possui poderes mediúnicos que o permitem contatar com os mortos. Um fardo, um pesado fardo que ele transporta como Sísifo transportava a sua pedra -e que Matt Damon personifica com uma desolação magistral.
Ironia: a capacidade de se ligar com os mortos é o impedimento principal para que George se ligue com os vivos.
E uma sequência do filme resume essa maldição de forma só acessível aos criadores de gênio: quando George conhece Melanie (Bryce Dallas Howard), a convida para sua casa e, por insistência dela, toma as suas mãos e espreita para o seu passado. Se o leitor não desabar emocionalmente com a sequência, acredite, o melhor é legar o seu corpo à ciência ainda durante a vida.
Paralelamente à história de George, duas outras histórias: a de Marie (Cécile de France), jornalista francesa que sobrevive a um tsunami mas não à experiência aterradora de ter visitado, por breves momentos, o que existe do outro lado; e a de Marcus (Frankie McLaren), cuja perda do irmão será o início de uma busca desesperada para contatar com ele.
Resumido assim, pode parecer que "Além da Vida" é um filme sobre mortos. Nada mais errado. "Além da Vida" é tanto sobre mortos como as fábulas de Charles Dickens são sobre fantasmas.
E não é por acaso que o George do filme tem um gosto especial pela literatura de Dickens. Os bons espíritos sempre se encontram: a literatura fantástica de Dickens, e em especial o seu "Christmas Carol" que o filme evoca na visita final à casa-museu do escritor, apenas permite que os fantasmas corrijam o rumo perdido dos vivos.
Corrigir o rumo: não há tema mais caro no cinema de Clint Eastwood. Essa busca de uma ordem existencial ameaçada que leva o pistoleiro Bill Munny a vingar as prostitutas desfiguradas em "Os Imperdoáveis"; que leva o pequeno Phillip a sacrificar o seu amigo (e sequestrador) Butch em "Um Mundo Perfeito"; que leva Walt Kowalski ao supremo sacrifício em "Gran Torino".
E que levará George, através do seu desgraçado dom, a devolver a graça a Marie e a Marcus. E, devolvendo-lhes a eles a possibilidade de uma vida, a redimir-se por eles e com eles.
Como no citado conto de Charles Dickens, o fantasma do futuro só aparece no fim -quando o passado e o presente já assombraram o avarento Ebenezer Scrooge.
O mesmo acontece em "Além da Vida". Só que esse futuro não é feito de solidão e terror; mas de reconciliação e esperança.
É o único momento em todo o filme em que George abandona as grilhetas passadas e presentes que o visitam e atormentam. E se permite a imaginar um futuro para si também.

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