segunda-feira, abril 04, 2011

MARCELO DE PAIVA ABREU - Jabuticabal econômico


Jabuticabal econômico
MARCELO DE PAIVA ABREU

 O Estado de S.Paulo - 04/04/11

Nas últimas semanas ganhou força a avaliação de que o governo vem adotando políticas que comprometem o controle da inflação, não hesitando, inclusive, em invocar teses sem fundamento econômico respeitável, tais como a ideia de que gastos de capital não pressionam a demanda.

Trata-se de inflexão importante. Afinal, faz parte da interpretação consagrada da evolução do lulismo a conversão do ex-presidente, em 2002-2003, à defesa da estabilização como peça central da estratégia de governo. Na verdade, tal inflexão pode já ter tido início no segundo mandato, quando as ações do governo começaram a sugerir que a conversão havia sido subordinada ao oportunismo político e que o entusiasmo pela estabilização poderia ser, como foi, submerso por conveniências eleitorais.

Tudo indica que a difusão do que os críticos mais ferozes do governo têm chamado de "miolomolismo" econômico infelizmente não se limita à esfera macroeconômica. As bases microeconômicas que fundamentam muitas das políticas públicas são tão equivocadas quanto os fundamentos da sua macroeconomia. O governo é fértil em produzir ideias "inovadoras" e pretensamente adequadas ao caso brasileiro, verdadeiras jabuticabas econômicas.

A recente crise relacionada à substituição do presidente da Vale ilustra, de forma exemplar, as deficiências da microeconomia do Planalto. O problema não é a sua substituição, embora o formato tenha sido deplorável. Não seria difícil apresentar argumentos respeitáveis que justificassem a mudança. O problema é que diversas das razões alegadas não fazem sentido, em particular a insistência de que a companhia deveria levar em conta a necessidade de "agregar valor" ao minério de ferro. Segundo a crítica governamental, o objetivo da empresa deveria ser tornar-se produtora siderúrgica significativa em escala global. Passaria a processar no Brasil parte de sua produção de minério de ferro.

Essas ideias equivocadas têm raízes históricas profundas. Foram responsáveis por atrasar por pelo menos três décadas a emergência do Brasil como exportador de minério de ferro. A mina de Itabira, que na era pré-Carajás era a principal fonte de minério da Vale, era controlada na década de 1910 por Percival Farquhar, financista norte-americano envolvido em diversos empreendimentos no Brasil, em particular a Estrada de Ferro Madeira-Mamoré. Farquhar, que não era flor que se cheirasse, pretendia exportar minério de ferro. Mas Arthur Bernardes, presidente da província de Minas Gerais e depois presidente da República, era contrário à exportação de minério sem processamento. Disso resultou um impasse só rompido com a criação da Vale, em 1942. Ironicamente, e ao contrário do que sugere a vã filosofia, a Vale foi criada à raiz das preocupações estratégicas britânicas com a disponibilidade de fontes globais de minério de ferro com baixo teor de fósforo. A partir dessa decisão e da remoção dos obstáculos à exploração de Itabira os EUA se dispuseram a financiar a modernização da mina e da Estrada de Ferro Vitória a Minas. As críticas do Planalto à estratégia da Vale estão em perfeita sintonia com as ideias de Bernardes sobre agregação de valor. Noventa anos depois...

A política de "adensamento das cadeias produtivas" é também expressa de forma espetacular na política de compras das empresas estatais, com a Petrobrás em posição preeminente. O Programa de Mobilização da Indústria Nacional de Petróleo e Gás Natural (Prominp) estabelece porcentuais mínimos de conteúdo local. O lema do programa, segundo a imprensa, é "agora é assim - tudo que pode ser feito no Brasil tem de ser feito no Brasil". É difícil imaginar diretriz mais primitiva. É a ressurreição da velha ideia de "similar nacional" que governou por muitos anos a política de importações no País. Qualquer noção sobre custos parece ter sido novamente perdida. Aprendeu-se pouco desde as primitivas metas de conteúdo local do governo JK há mais de meio século. A proteção à produção nacional de bens e serviços poderia ser justificada em muitos casos, desde que houvesse um período de aprendizado claramente definido. O que no jargão da Organização Mundial do Comércio se chama cláusula de caducidade. Deveria haver gradativa exposição à competição internacional e minimização do risco de perpetuar atividades ineficientes.

Em vista dos enormes desafios a enfrentar no futuro, é necessário repensar e reformar profundamente a ação estatal relativa à política industrial. Para isso é essencial que se abandonem ideias toscas sobre adensamento das cadeias produtivas.

No caso da Vale não há razão para questionar a estratégia adotada pela empresa desde a sua privatização. É só olhar em volta e constatar que as suas grandes rivais - Rio Tinto, BHP - não se verticalizaram e também buscaram minimizar o risco empresarial via diversificação do mix da produção mineral.

No rescaldo fica o gosto amargo da impropriedade da forma de interferência do governo nos assuntos de uma empresa que não é estatal. E, no futuro, ganham corpo as dúvidas quanto à possível aplicação das ideias tortas sobre adensamento das cadeias produtivas na esteira do pré-sal.

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