quinta-feira, abril 07, 2011

KENNETH ROGOFF - Sem lágrimas


Sem lágrimas
KENNETH ROGOFF

O GLOBO - 07/04/11

Médicos sabem há muito que não é como você come, mas o que você come, que melhora ou piora sua saúde. Da mesma forma, economistas há muito notaram que, para países empanturrados de recursos externos, há grande diferença entre investimentos financeiros e na economia real.

Com formuladores de políticas e analistas protestando contra grandes desequilíbrios comerciais, precisamos reconhecer que os problemas estão enraizados no excessivo endividamento. Se os governos do G-20 pudessem recuar no tempo, canalizariam uma parte maior dos recursos para investimentos produtivos e o sistema financeiro global seria mais robusto do que é hoje.

Infelizmente, estamos muito longe do mundo idealizado no qual os mercados financeiros dividem os riscos eficientemente. Dos US$200 trilhões em ativos financeiros, quase três quartos estão em algum tipo de investimento financeiro, incluindo empréstimos bancários, títulos de empresas privadas e papéis de governos. O mercado de derivativos ajuda a estender o risco mais amplamente do que esse cálculo indica, mas o ponto básico se mantém.

Certamente, há boas razões econômicas para o apetite insaciável por dívidas dos emprestadores. Informação defeituosa e dificuldades para monitorar empresas são obstáculos significativos para os instrumentos de compartilhamento de risco idealizados.

Distorções politicamente induzidas também têm enorme impacto. O sistema tributário de muitos países favorece o endividamento em relação ao investimento. A explosão no mercado imobiliário americano poderia nunca ter alcançado as proporções que teve se os donos de imóveis não fossem autorizados a abater do imposto os juros dos financiamentos. Permite-se às corporações deduzir pagamento de juros sobre títulos, mas dividendos de ações são taxados tanto para pessoas físicas quanto jurídicas.

Bancos centrais e ministros da Fazenda também são cúmplices, já que o socorro a endividados é muito mais agressivo que a investidores. Mas, contrariamente à retórica populista, não é só o detentor de títulos rico e bem relacionado que é resgatado. Muitos pequenos poupadores colocam suas economias em fundos de investimento que rendem acima dos depósitos com garantia federal.

Não deveriam levar em conta o risco? Um momento crítico da crise ocorreu quando, logo após o colapso do Lehman Brothers, em setembro de 2008, um desses fundos não conseguiu remunerar seus clientes. É claro que foi resgatado, junto com todos os outros fundos.

Não estou advogando uma volta à Idade Média, quando as leis de usura da Igreja proibiam cobrar juros sobre empréstimos. Naquela época, investidores tinham de imaginar esquemas fantásticos para disfarçar os juros. Hoje, o pêndulo oscilou demais na direção oposta. Talvez estudiosos para os quais a proibição da cobrança de juros nos sistemas financeiros islâmicos geram ineficiências deveriam buscar em tais sistemas ideias positivas que pudessem ser adotadas no Ocidente.

Infelizmente, superar a propensão profundamente arraigada ao endividamento nos sistemas financeiros dos países ricos não será fácil. Nos EUA, por exemplo, nenhum político está disposto a dizer que deduções de pagamentos de hipotecas imobiliárias deveriam ser eliminadas, ou que pagamentos de dividendos deveriam ficar isentos de taxação. Da mesma forma, países em desenvolvimento deveriam acelerar as reformas econômicas - o mercado acionário em economias emergentes é como o Velho Oeste, com regras obscuras e fiscalização frouxa.

Ainda pior, mesmo quando o G-20 fala em encontrar um modelo para neutralizar desequilíbrios globais, alguns de seus membros adotam regras que vão na direção oposta. Por exemplo, temos agora um FMI tamanho GG, cuja capacidade de emprestar foi triplicada para US$750 bilhões. A Europa também expandiu, de forma similar, seus instrumentos de crédito. Estes fundos podem provar serem efetivos no auxílio a curto prazo, mas, no longo prazo, deverão causar mais problemas e plantar as sementes de crises mais profundas.

Um método melhor seria a criação de um mecanismo para orquestrar de forma ordenada o default de devedores soberanos, para minimizar os estragos quando ocorrerem as crises e para desencorajar emprestadores da ideia de que o dinheiro do contribuinte resolve todos os grandes problemas. O FMI propôs exatamente tal mecanismo em 2001, e uma ideia similar foi discutida mais recentemente para a zona do euro. Infelizmente, contudo, ideias sobre mecanismos para reestruturação de dívidas permanecem sendo apenas isto: construções puramente teóricas.

Nesse meio tempo, o FMI e o G-20 podem ajudar a encontrar melhores caminhos para avaliar a vulnerabilidade da estrutura financeira de cada país - o que não é fácil, dada a imensa esperteza dos governos quando se trata de proezas contabilísticas. Formuladores de políticas podem também ajudar a encontrar formas para reduzir barreiras ao desenvolvimento dos mercados acionários, e apresentar ideias sobre novos tipos de títulos, como os atrelados ao PIB propostos por Robert Shiller, de Yale. (Os títulos de Shiller, na teoria, rendem mais quando a economia de um país está em crescimento e menos quando está em recessão).

É claro que, mesmo se a composição dos fluxos internacionais de capital puder ser modificada, ainda há muito boas razões para tentar reduzir os desequilíbrios globais. Uma dieta rica em ativos como ações e investimento direto e pobre em endividamento não é substituta para outros elementos de saúde fiscal e financeira. Mas nossa atual e insalubre dieta de ativos é um componente importante de risco que tem recebido muito menos atenção do que deveria no debate político.

KENNETH ROGOFF é economista.

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