sexta-feira, abril 08, 2011

IGNÁCIO DE LOYOLA BRANDÃO - Falando para quem mexe com a terra


Falando para quem mexe com a terra 
 IGNÁCIO DE LOYOLA BRANDÃO
O ESTADO DE SÃO PAULO - 08/04/11

Maria Bethânia. Estou contigo e não abro, como se dizia certa época neste Brasil. Você merece o que pediu pelo seu blog de poesia, e muito mais, o dobro, o triplo, dez vezes. Se porcarias como esses musicais americanos importados recebem uma grana alta, por que não a cantora que tem a mais coerente e bela carreira da música popular brasileira? Poesia é fundamental para abrir o coração.
Comecei contigo, Bethânia, continuo, para te contar a experiência que, semana passada, tive no interior do Estado, em Santa Cruz do Rio Pardo, pequena e aconchegante cidade. Poesia é também o contato com a terra. Quando a bibliotecária Haydé Augusta Rosa entrou comigo na escola agrícola do Centro Paula Souza, fui tomado pelo cheiro de café fresco. Ao me aproximar da mesa, o professor Luis Alberto Belezi, o Belo, me estendeu uma xícara. A fumacinha tênue e perfumada me conduziu à casa de minha avó Branca, em Araraquara, onde todas as tardes ela coava café caboclo, ralo e doce, que tomávamos com pão de coco, enroladinho.
Enquanto esperava o momento de inaugurar a biblioteca, sorvi aquele café que me aqueceu, trocando ideias com Belo sobre coadores de pano, melhores do que esses industrializados, de papel. Aqueles coadores de pano que de tão usados adquiriam a cor amarronzada e queimavam melhor o pó. Coadores feitos em casa, era preciso fervê-los na água misturada ao pó, para "amaciar", assim como havia gente que pedia aos filhos ou irmãos para usarem o sapato novo, a fim de "amaciarem".
Estive no Centro Paula Souza para inaugurar a biblioteca da Escola Técnica Estadual Orlando Quagliato, uma luta da bibliotecária Haydé. Ainda tem muita gente assim no Brasil. Para um escritor é bênção/entusiasmo ver mais uma biblioteca aberta, elas são bases para a cultura, o hábito da leitura, a viagem pela fantasia. Imaginem a primeira biblioteca de uma escola agrícola, na qual os livros técnicos sobre solo, técnicas de plantio, processamentos agropecuários, produção vegetal, clima, suinocultura, estatísticas vão conviver com romances, poesia, contos e crônicas em que a imaginação corre solta. Uma alegria ver uma biblioteca numa escola pública em que a primeira lista de material escolar pede enxada, chapéu de palha, botinão, jeans usado e camisa de manga comprida para enfrentar sol e chuva. Considerei-me privilegiado. Quantos autores já viveram esse momento de contato com gente que trabalha a terra e viu pela primeira vez um escritor pela frente e ouviu os processos de criação, essa gente que também mexe com a criação daquilo que nos sustenta?
Ouvi uma reação curiosa contada pela Leni de Fátima Dário, coordenadora da escola. Uma pessoa que deveria ter ido ao aeroporto de Bauru me buscar, pediu a uma colega que fosse em seu lugar. Estava entusiasmada, porém intimidada. Achou que não saberia o que conversar com um escritor, que tipo de assuntos me interessavam, para ela eu devia ser distante, inacessível, difícil, ia falar de temas altamente intelectuais, acadêmicos. O bom dessas viagens é a desmitificação da inacessibilidade do escritor, nesses momentos mostramos o que realmente somos, gente do dia a dia, normal (bem, tenho algumas dúvidas). Tirando minha cara brava, amarrada (é de nascença), aquela mulher acabou descobrindo que falo de tudo, de literatura, ferrovias, futebol, caipirinhas, curau, mulheres, filmes e fantasmas.
Sim, fantasmas! Porque Edvaldo Nicolini, que também se empenhou para levar um escritor à escola agrícola que ele dirige, me avisou que há (ou dizem que há) um fantasma assombrando o porão da sede urbana da escola, bonito prédio histórico, de altíssimo pé-direito, em cuja fachada está escrito: Meninos de um lado, Meninas do outro. Inscrições que vêm dos tempos em que homens e mulheres estudavam separados por paredes. Eu queria, porque queria saber do fantasma, pensei em passar a noite lá, não me deixaram. Confesso, era uma bravata. Dormi no hotel!
O refeitório da escola, no campo, foi montado para a conversa com os alunos. Eram 500 (há gente de todos os Estados, até do Pará) e me deixaram com a boca seca, ansioso. Vieram alunos de outras escolas, inclusive da Fafil, de Letras. Como conduzir uma fala para aquela gente que tinha olhos brilhando e que vive em outro mundo, pé no chão, digo na terra? Contei histórias, mostrando que literatura é prazer. Foram duas horas com fala, perguntas, respostas. E, então, pose para fotos em celulares. Antigamente eram autógrafos, hoje são fotos. Os próprios alunos, em poucos minutos, remontaram o refeitório, o almoço começou. Tudo que ali se produz ali se come. Sentei-me a saborear alface tenra, tomates suculentos, maionese fresca, lombo de porco com abacaxi, frango assado crocante, como poucos restaurantes quatro estrelas desta São Paulo conseguem fazer. Coisas da terra à nossa volta. Ao regressar a Bauru para pegar o avião, atravessei um milharal verdíssimo e me lembrei das pamonhadas que se faziam em Vera Cruz na minha adolescência, em tardes que reuniam famílias e colonos de várias fazendas e o cheiro do milho ralado e do curau subia das panelas, tão intensamente que permanece ainda hoje. Da escola agrícola de Santa Cruz não esquecerei jamais.

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