sábado, abril 30, 2011

FERNANDA TORRES - Pertencer


Pertencer

FERNANDA TORRES

FOLHA DE SÃO PAULO - 30/04/11 

Tentar extrair do universo criativo uma planilha de resultado é um risco admirável, quase suicida


ANO PASSADO, fui mestre de cerimônia ao lado de Oscar Filho, o pequeno pônei do CQC, de uma noite dedicada às marcas e às campanhas publicitárias mais lembradas pelos consumidores em São Paulo. Na plateia, estavam presentes representantes das principais agências de propaganda brasileiras e seus respectivos clientes.
Já na primeira lista de concorrentes, quando mencionamos o nome dos criadores e produtos, eu e Oscar fomos surpreendidos por uma fanfarra de cornetas, confetes e serpentinas vinda das mesas no fundo da plateia.
A euforia estabeleceu um padrão de comportamento ascendente no restante do evento. Cada cliente e agência chamados à ribalta superava as manifestações de alegria, orgulho e entusiasmo dos anteriores em ritmo exponencial. Não demorou, perdemos o controle da situação.
O nobre teatro ganhou ares de Coliseu Romano. Parecia o encontro da Gaviões da Fiel com a Mancha Verde e a Raça Rubro Negra. Devido ao avançado da hora e para não excitar ainda mais os ânimos, deixamos o palco logo após um encerramento sucinto.
No hotel, não consegui dormir, impressionada com a passionalidade da festa. Não conheço fervor parecido na área da cultura. Talvez por ela não movimentar o volume de dinheiro que o setor publicitário movimenta, ou por não lidar com a responsabilidade de metas e resultados que o mundo corporativo requer.
Dedé Laurentino é um pernambucano inteligentíssimo, escritor, começou como diretor de arte e acabou em Londres, como chefe de criação, importado por uma baita agência com ramificações no Brasil. Dedé me contou uma vez que, logo que chegou a São Paulo, se surpreendeu ao ser perguntado de onde era. "De Recife", respondeu. Mas a pergunta se referia não à sua origem, e sim à empresa que o empregava.
O fato diz muito a respeito da importância do trabalho em São Paulo e da segurança quase cívica de fazer parte de uma grande organização, seja uma agência de propaganda, um jornal ou uma rede alimentícia.
Desde "Os Normais" eu não tinha contrato mais extenso com a Rede Globo de Televisão. Em fevereiro deste ano, ao atravessar a roleta do impressionante complexo industrial do Projac e embarcar no carrinho de golfe que me conduziria até o estupendo estúdio, senti novamente o estranho alívio de fazer parte de uma macroestrutura econômica.
Raramente me sinto assim. Sou filha de saltimbancos desgarrados. Por alguma deformação grave, me sinto insegura quando estou empregada.
Não existem corporações no Rio, só a Rede Globo. A Petrobras é estatal, e a Eletrobrás também, resquícios da Capital Federal. Temos a siderurgia, que eu conheço pouco, temos Eike Batista, mas Eike é um investidor com interesses diversos, muito diferente da figura patriarcal do Doutor Roberto Marinho.
Em "Tapas e Beijos", série que gravo no atual momento, uma rua inteira de Copacabana foi construída na cidade cenográfica. Os apartamentos dos prédios de três, quatro andares, têm paredes e decoração. Dois cromaquis gigantescos fecham as laterais do cenário. Equipes de finalização aplicam digitalmente a continuação das avenidas e dos prédios sem que se perceba no ar a diferença entre o real e o gerado por computador.
No dia em que conheci nosso quarteirão, eu e minha colega Andrea Beltrão nos confessamos o pânico de não corresponder às expectativas de tamanho investimento. Semanas depois, em um evento de lançamento em São Paulo, cruzei com os executivos que aprovaram a verba para o programa e novamente confidenciamos as nossas mútuas apreensões.
A criação artística é um dragão de mil cabeças, todas imprevisíveis. O desejo do público é igualmente incerto. Tentar extrair do universo criativo uma planilha de resultado é um risco admirável, quase suicida.
Marcelo Camelo declarou com razão que vivemos em um fundamentalismo materialista. São tempos de pesquisas e resultados. É o universo das corporações, da violência da democracia global, do desejo da maioria e das grades comparativas de performance.
Apesar do empenho para me adequar à ordem vigente, sou toda século retrasado. Uma individualista romântica, influenciada pelo cinismo de Flaubert, pela casmurrice de Machado e pela indolência tropical do "Cortiço" de Azevedo.
Macunaíma em rédea curta.

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