terça-feira, março 01, 2011

ROBERTO PADOVANI E FELIPE SALTO

O canto das sereias
ROBERTO PADOVANI  E  FELIPE SALTO
Valor Econômico - 01/03/2011

O debate fiscal no Brasil tem sido curioso. A maior parte dos analistas econômicos não acreditava em qualquer esforço fiscal relevante por parte do governo. Quando o ajuste foi anunciado, as avaliações mais comuns chamaram a atenção para a insuficiência do corte ou para as dificuldades de implementação.

Tamanha descrença diz muito sobre o regime fiscal do país.

Independentemente da discussão dos cortes e de sua execução, o ceticismo corrente faz sentido e reflete algo grave: a perda de credibilidade da política fiscal. De fato, a falta de regras críveis na condução da política somada à gestão dos últimos anos fortalecem a desconfiança geral.

Diferentemente de outras áreas, tem-se avançado muito pouco na construção de instituições fiscais sólidas. A Secretaria do Tesouro Nacional, a Lei de Responsabilidade Fiscal (LRF) e a definição de regras formais para a evolução do superávit primário, via sistema de metas anuais, foram avanços inegáveis e fundamentais. Mas, diferentemente da política monetária, as decisões fiscais não são colegiadas, não há o nível de transparência necessário e, muito menos, o "enforcement" para prestação de contas clara e acessível. A contabilidade criativa empreendida nos últimos dois anos, principalmente, e o contínuo descumprimento de metas são exemplos da permissividade institucional atual.

A ausência de maiores garantias institucionais tem implicações práticas importantes. Quanto menor o controle institucional e a falta de transparência das ações da administração pública, tanto maior a dependência da credibilidade fiscal em relação ao "gestor de plantão". Justamente por isso, a política fiscal brasileira vem sendo forte e negativamente contaminada pelo desempenho e discursos baseados em posicionamentos meramente ideológicos.

Os resultados recentes não ajudam a construir uma boa reputação. A expansão fiscal de 2009 teve o mérito de acelerar a recuperação local. No entanto, um novo e forte crescimento dos gastos públicos, no ano seguinte, durante o período eleitoral, começou a produzir efeitos negativos sobre a economia. Os gastos, como proporção do Produto Interno Bruto (PIB), saltaram de uma média histórica de 16%, nos anos de 2000 a 2008, para 18%, em 2009, e 19% no ano passado. Neste cenário, a pergunta mais comum é: se a defesa enfática do aumento do gasto público federal tem sido uma das características do governo do PT e os quadros da Fazenda pouco se alteraram, por que haveria uma mudança de rumos agora? É nesse argumento que se baseia o ceticismo predominante.

Com poucas restrições institucionais e um passado que condena, resta a confiança teórica nos incentivos políticos e econômicos para que se mantenha a crença na racionalidade fiscal.

Destarte, há um curioso e raro consenso entre economistas, da heterodoxia à ortodoxia. Isoladas as diferenças ideológicas e as preferências de ordem política ou normativa, a racionalidade econômica impôs uma unanimidade de diagnósticos: a expansão fiscal conduz a um desequilíbrio amplo, pressionando a balança comercial, a taxa de câmbio, a inflação e a taxa de juros. Como a instabilidade macroeconômica não interessa a ninguém - a inflação não é mais aceita pela sociedade - todos sabem que o ajuste fiscal é condição necessária para se alavancar o crescimento não inflacionário.

Dessa forma, mesmo com todos os problemas contratados no âmbito fiscal, o ajuste em 2011 deverá ser entregue. Bons sinais, nesse sentido, são o empenho do governo na aprovação do salário mínimo de R$ 545 e o contingenciamento de R$ 50 bilhões anunciado.

Mesmo assim, a maior institucionalização da gestão fiscal é indispensável. A alta recente da inflação, o impacto já esperado sobre as contas públicas do reajuste do salário mínimo em 2012 e as diversas restrições políticas e institucionais para uma correção maior no curto prazo indicam que um ajuste gradual faria sentido. O gradualismo, por sua vez, depende de um quadro institucional mais sólido.

Com um maior formalismo e restrições institucionais, a gestão fiscal convenceria a sociedade de que o ajuste de curto prazo poderia se estender ao longo dos próximos anos. A maior institucionalização da gestão fiscal seria fundamental para assegurar um menor ritmo de crescimento das despesas correntes do governo, ao longo do tempo, independentemente da boa vontade ou da "sagacidade" dos governos.

Tal qual Ulisses, que se amarrou ao mastro do navio para não ser atraído pelo canto das sereias, o Estado precisa criar amarras mais rígidas para evitar que incentivos perversos desviem os governos da rota inicialmente traçada.

Um anúncio fiscal como o que foi feito há algumas semanas, aliado à percepção de que ele teria continuidade ao longo do tempo, poderia trazer resultados imediatos ao mercado e aos formadores de opinião. O mercado financeiro, por dever de ofício, antecipa os impactos das políticas públicas sobre o preço dos ativos. Com maior rigor fiscal, abrir-se-ia espaço para juros mais baixos e câmbio menos apreciado. Da mesma forma, um ajuste fiscal sustentável ao longo do tempo possibilitaria a redução da carga tributária e o aumento dos investimentos públicos e privados. Ou seja, um crescimento econômico maior.

A atual falta de credibilidade na área fiscal, portanto, impede que se antecipe um cenário econômico que, acreditamos, tende a ser positivo. É preciso dar um passo à frente. Precisamos consolidar instituições para fugirmos das confusões e promessas não cumpridas no passado recente. O crescimento econômico agradece.

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