sexta-feira, fevereiro 25, 2011

IGNÁCIO DE LOYOLA BRANDÃO

Meus operários em construção
IGNÁCIO DE LOYOLA BRANDÃO
O ESTADO DE SÃO PAULO - 25/02/11

Vizinho à minha casa na João Moura estou vendo erguer, dia a dia, hora a hora, um edifício e tudo me parece uma orquestra ou relógio de precisão. As lajes chegaram à altura de meu apartamento e durante o dia, em momentos variados, vou à janela e contemplo o formigueiro que circula em uma coreografia bem ensaiada. Este, sim, é um reality show, show da vida.

De manhã chego à janela e aceno para o homem que, em seu macacão verde, parece comandar as primeiras operações. Ele se acostumou ao cumprimento, olha para o meu prédio, me responde. Talvez pense: "Esse não sai de casa. Está ora numa janela, ora na outra, enquanto estamos ao sol, na garoa, ao vento, na chuva muitas vezes. Quem será? Um aposentado? Do quê? Ou um inválido? Quantos anos tem? Vida boa leva". De onde está não me vê ao computador, nunca.

As fundações, a princípio, me assustaram, iam cavando juntinho ao meu prédio e eu, catastrofista, pensava que poderíamos afundar. Se tivesse acontecido naquela época a tragédia serrana do Rio de Janeiro, teríamos evacuado o prédio correndo. Um dia, bateram num veio subterrâneo e a água subiu, por meses jorrou para a rua um corregozinho límpido, quem sabe podia ser potável. Dizia seu Chico, vizinho falecido há pouco, que nesta quadra havia várias fontes que alimentavam as chácaras existentes, numa época em que a Rebouças nada mais era do que uma rua estreita e mal afamada. Ele, com seus 80 e tantos, morou sempre aqui e em seu terreno, que quase chega à Rua Cristiano Viana, existem jabuticabeiras, bananeiras, mangueiras, laranjeiras, flores, pássaros. No prédio em frente, onde mora o Arnaldo Jabor, existiu uma vila de casas e uma fonte de água onde todos vinham se abastecer. Vila e fonte desapareceram.

Mudei de casa por uns meses, enquanto reformava meu apartamento, e não vi nem ouvi a colocação das fundações com os bate-estacas. Quando voltei (reformas, fontes de neuras, estresses, separações, internamentos), o prédio estava na primeira laje. Então comecei a seguir a subida, ordenada, sincronizada. Primeiro, surge um paliteiro de madeiras claras, quase brancas. À medida que vão sendo utilizadas e reutilizadas, as madeiras vão escurecendo, algumas tornam-se cinzentas, são repostas. São as formas para as pilastras, preenchidas por concreto. Apoiado sobre elas vem um piso de madeira e sobre ele se estende um emaranhado de ferros, teia de aranha resistente que dará sustentação à laje de concreto.

De um momento para o outro, conduítes negros se espalham como cobras por todos os lados ou tentáculos de um polvo. Servirão à hidráulica e à iluminação. Num determinado dia, chega o caminhão de concreto, tubulações são estendidas até o elevador. Começam a subir os carrinhos, o concreto é um mingau espesso, que alimenta um edifício insaciável. O doido aqui pensa: e se calculam errado? Então, é hora dos temíveis vibradores de cimento com ruídos agudos e corroendo o ouvido. Os operários parecem não sentir. De que matéria física são feitos? Lembro-me que morava na Roosevelt no final dos anos 60, quando a horrenda praça foi construída (estão reformando agora). Não havia lei do silêncio, os vibradores rompiam a noite, nos deixavam malucos, usávamos tampões de ouvido, não adiantava, assim como não adiantavam reclamações, protestos, eram tempos de ditadura, direitos individuais não existiam.

Aqui, o tempo inteiro ouvimos tábuas sendo jogadas, batidas, empurradas, serradas e esqueço a irritação porque me vem a memória de infância, eu morava em Araraquara ao lado da serraria Negrini, eram os mesmos barulhos, só que lá existia o cheiro da serragem de cedro que perfumava o ar. Depois da concretagem, estendem uma rede colorida ao redor de todo o andar, como pescadores cercando peixes numa praia.

O mais admirável em uma construção é observar a movimentação dos operários. Todos usam um macacão verde, suspensórios amarelos e há cintos com bolsas, as ferramentas estão ao alcance da mão, lembrando os coldres dos filmes de faroeste. Quem saca o martelo mais rápido? Imagino o calor que sofrem neste verão em que a temperatura chega aos 36 graus. Ao sol, movimentando-se rápidos, qual é o grau de exaustão, de desidratação? Como suportam? Assombra-me a fortaleza desses operários, agitados o tempo inteiro. Não há como parar, descansar um minuto, um ato depende do outro, você executa o seu, para o outro poder continuar o dele. Como músicos em uma orquestra. Ou um bom jogo de futebol. Todos precisam estar atentos, afinados.

Esses homens não têm pauta, mas parecem seguir um maestro e entrar no ritmo exato. Há capacetes de diferentes cores e o branco deu-me a sensação de ser o do mestre de obras, andando de um lado para o outro sem parar, afastando-se e contemplando a distância, orientando aqui, amarrando ali, chamando a atenção lá. Jamais o mestre, um senhor magro, moreno, projetos abertos, atento, inquieto, trena e nível nas mãos, olhou para minha janela; talvez seja discreto demais. Até hoje não sei qual é a função específica de cada capacete. Há os verdes, os vermelhos, os cinzas (poucos) e outro dia havia dois marrons. Claro, devia parar e perguntar, sou curioso. Por outro lado, sou conduzido pela imaginação e fantasia, tento adivinhar. Sei que engenheiros também usam o branco.

Operários em construção, penso, parafraseando Chico Buarque. São como um poema, cada verso em seu lugar, cada palavra precisa ser exata, o erro de uma quebra o ritmo, o compasso da obra que sobe. Será que eles têm noção de que são música, poesia, de que constroem e ali vai morar gente, e dentro dos tijolos que colocam, fechando paredes, vai haver amores e desamores, emoção, alegria, felicidade dores, sofrimentos, amarguras, choques, prazeres? Ali serão produzidas lembranças, pessoas, haverá criação, arte, música, tragédias. Quando olho para o meu próprio prédio, lembro-me que aqui morou Helena Silveira, que escreveu romances, contos e foi a primeira crítica de tevê do País. Sem esses homens de capacetes coloridos, sofrendo ao calor, ao sol, molhando-se na chuva, deixando-me em suspense quando chegam à beirada dos andares (fico sem fôlego, desvio o olhar), batidos por um vento que pode elevá-los ao ar, como pássaros sem asas, sem eles não haveria esta cidade.

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