quarta-feira, agosto 25, 2010

MARGARIDA MARIA L. CAMARGO e HENRIQUE RANGEL CUNHA

As cotas nos EUA
MARGARIDA MARIA L. CAMARGO 
e HENRIQUE RANGEL CUNHA

O GLOBO - 25/08/10

A questão das cotas raciais nas universidades públicas brasileiras tem sido enfrentada paulatinamente, mas o Supremo Tribunal Federal ainda não se pronunciou para dizer se a reserva de vagas fere ou não o princípio da igualdade previsto na Constituição Federal. Dado que não raramente a experiência de outros países é tomada como referência para nossas decisões, vale destacar alguns aspectos sobre o que disse a Suprema Corte americana quando, em 2003, julgou o Caso Grutter vs Bollinger.

Barbara Grutter, não selecionada para o curso de Direito da Universidade de Michigan, contestou judicialmente o processo seletivo daquela universidade, que leva(va) em consideração, entre outros fatores, a origem étnica e racial dos seus candidatos.

A Suprema Corte é chamada então a dizer se a política admissional adotada fere ou não a Equal Protection Clause, contida na emenda constitucional n° 14.

Por maioria de 5 a 4, o Tribunal entendeu que, especificamente naquele caso, não houve violação à Constituição, pois se tratava de uma política institucional com objetivo justificável, qual seja, obter os benefícios educacionais advindos de um corpo estudantil diversificado. Desde um paradigmático precedente judicial de 1978 (o Caso Bakke), a diferenciação por critério de raça nesses processos de admissão era vedada, exceto quando servia para cumprir, de forma incisiva e estrita, um interesse governamental bastante convincente. Há, entretanto, uma substancial diferença entre os dois casos. Enquanto, no Caso Bakke, a Universidade de Harvard reservou 16% das vagas do curso de Medicina para candidatos pertencentes a grupos minoritários, Michigan avaliou a raça como um fator a mais, um plus, na escolha de seus alunos.

A distinção entre um sistema de reserva de vagas, como no caso Bakke, e um sistema que, além da pontuação básica, considera outros fatores como o racial e o étnico, deve ser notada e sugere não confundirmos “cotas raciais” com “ações afirmativas”.

As ações afirmativas são ações governamentais que buscam nivelar a sociedade, de forma a incrementar as condições de igualdade material. As cotas podem ser vistas como uma forma de ação afirmativa, mas não a única, capaz de excluir outras iniciativas possíveis, como mostra o exemplo norte-americano.

O sistema de cotas foi tido como inconstitucional, por reservar determinado número de vagas a um grupo específico da população, ferindo a universalidade do acesso ao ensino superior, enquanto a política de admissão de Michigan foi considerada legítima, na medida em que considera a raça e a etnia como aspectos a mais, a pesarem favoravelmente na escolha dos alunos aptos a ingressar naquela universidade.

Vale notar quão decisiva foi a atuação dos amici curiae no Caso Grutter vs Bollinger.

A manifestação das grandes indústrias, das empresas de comunicação de massa e do Exército foi determinante ao mostrar a importância da integração cultural para melhores resultados na economia e na área da segurança nacional.

Ainda que a Corte tenha considerado os efeitos da decisão para toda a sociedade — diversidade e inserção social com reflexo positivo para o indivíduo e para a coletividade — sua posição foi minimalista, circunscrevendose ao caso específico em lugar de se preocupar com a criação de um precedente que dispusesse para casos futuros. Verificou-se que a política educacional da Universidade de Michigan era adequada aos fins pela mesma pretendidos: preparar futuros profissionais para lidar com a diversidade. Fins estes justificados à luz do exame criterioso da Suprema Corte: o chamado strict scrutiny, típico dos casos que envolvem a cláusula da igualdade. A decisão aponta no sentido de que a ação afirmativa não deve privilegiar raças, mas pode distinguir pessoas com perfil identificável a determinada política pública.

E, como típico do pragmatismo norte-americano, a decisão focou resultados futuros, enquanto no Brasil as ações afirmativas de cotas raciais amparam-se em razões de reparação histórica.

Um comentário:

guerreiro disse...

O caso Bakke deixou clara a dificuldade de se desafiar a elite branca americana. O caso teve bastidores dignos das tramas hollywoodianas. A argumentação da "defesa" deixou de tocar nos pontos principais que deveriam ser trazidos à tona :"For example, in the landmark Bakke case, University of California had no interest in arguing that Allan Bakke may have been denied admission because the Dean at the UC Davis Medical School had the prerogative to admit relatives of wealthy donors."
O caso Grutter representou uma derrota afirmativa? De certa forma acreditamos que esta decisão seja uma pedra na construção e não um obstáculo intransponível. A decisão abre portas, altera estratégias, traça novas metas. Cotas são parte das ações afirmativas, discriminação positiva etc.
Não concordo com a afirmação do parágrafo final. Razões de reparação histórica não são as únicas. Apenas para o O Globo, inimigo declarado das ações afirmativas como um todo, que procura criminalizar as ações afirmativas, as razões seriam exclusivamente estas. Nos EUA reparação também é parte do contexto.
É difícil comparar o processo da escravidão no Brasil com o de qualquer outro país. Pela duração, extensão territorial, número,relação jurídica etc. O Brasil teve a menor taxa de reprodução em cativeiro devido ao péssimo tratamento, com a mais alta taxa de mortalidade e menor expectativa de vida. Os castigos físicos mais severos e a separação de famílias(oriundas e nascidas aqui) foram traços, deste período, sem paralelo. O livro Neither Black nor White (CARL DEGLER)e Black Breeding Machines de Edward Donoghue são bastante interessantes para esta análise.