domingo, junho 20, 2010

FERNANDA TORRES


Spartacus

REVISTA VEJA - RJ
Fernanda Torres
Está puxado... Muito puxado. Além de atacar em todas as frentes para fechar a meta anual de faturamento da microempresa doméstica pela qual sou responsável, ainda me divido em mil para tentar ser uma mãe decente e um ser humano aceitável. Se a mulherada soubesse, não teria queimado tanto seus sutiãs. Como o dia só tem 24 horas, a solução foi otimizar o tempo e cortar os supérfluos. Resultado: cinema, teatro e literatura? Só infantis, do tipo que dá para consumir com as crianças. Minto, vi o último Woody Allen porque estava passando em um cinema no shopping onde tenho espetáculo. Adorei. Não sei precisar há quanto tempo não via um filme de adulto, por isso peço perdão, mas vou falar de Fúria de Titãs.
Assisti incontáveis vezes na TV à primeira versão do filme. Aquela, mezzo italiana, mezzo americana, com Laurence Olivier de Zeus, coroado com uma breguíssima auréola de neon azul. Liam Neeson, a autoridade suprema do Olimpo na versão atual, também não escapou da cafonice, ornado com longa cabeleira até o mamilo e vestido com uma incompreensível armadura medieval que reluz tal e qual panela bem areada. Ralph Fiennes encarna o amargo Hades em uma variação inócua e coxa de seu Valdemort de Harry Potter. Perseu é vivido pela carne e osso do ator de Avatar, Sam Worthington. Sem a ajuda da computação, o moço coleciona três ou quatro parcas expressões faciais com as quais atravessa a película; mas não importa, o que interessa é que os gregos estão lá, maiores do que qualquer erro de casting, luz ou figurino.
Chorei em Fúria de Titãs. Chorei pela eterna dependência entre homens e deuses, e vice-versa, e por constatar quanto ainda somos pagãos. Eu sei que Cristo veio para nos livrar da violência e da indiferença do panteão de divindades da antiguidade — seres ciumentos, vingativos e voluntariosos —, mas a verdade é que estamos muito mais próximos deles do que da misericórdia cristã. Só a exercemos porque vigiamos severamente, todos os dias, os instintos mais primitivos e arranjamos um jeito de apelar para os são isso e são aquilo, libertando assim nosso politeísmo latente.
Uma vez, mostrei trechos de Spartacus, o clássico de Stanley Kubrick, ao meu filho; ele tinha de 5 para 6 anos. Kirk Douglas, na pele do escravo revoltado, come o pão que o diabo amassou nas masmorras e arenas do mundo antigo, enquanto Laurence Olivier se refestela em meio à fartura romana. Eu expliquei a meu rebento quem era Spartacus, falei da revolta dos oprimidos, da importância da noção de sacrifício e comiseração imposta por Jesus. O moleque me olhou com indiferença. Quando sir Laurence passou em revista as tropas da legião romana, altivo, cruel e empertigado, exercendo seu talento superior de ator em um personagem desconhecedor de culpa, e rodeado pelo poder de produção de Hollywood, os olhos do meu filho brilharam. “Quem é esse?”, ele me perguntou de bate-pronto. “É o romano”, respondi. “Eu sou romano”, sentenciou o pequeno sem pestanejar. Nada o demoveu da ideia, nem o fato de eu repetir que o herói era Spartacus. E seu fascínio só triplicou diante das toras de madeira incandescentes rolando montanha abaixo sobre o exército dos desgraçados. Meu menino tinha orgulho de ser bárbaro, como só uma criança admite ser e como, no fundo, todos nós somos de maneira dissimulada.
Os gregos são os pais de Roma e do Ocidente. Estão presentes na guerra, nas artes e ciências humanas, na política, na psicologia e no céu que nos protege. Ali, cunharam infindas constelações com o nome de seus deuses e entidades imortais. Muitas vezes tenho a impressão de que tudo o que veio depois foi pura deterioração da delicadeza, sensualidade, criatividade e engenho de sua civilização. Os romanos eram mais bélicos, os europeus mais mórbidos e os americanos mais broncos. O mundo deveria assumir para si a recente dívida pública grega em gratidão a tudo o que devemos a eles.

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