sábado, junho 05, 2010

BRASIL S/A

Zonzeira do poder
Antonio Machado

CORREIO BRAZILIENSE - 05/06/10

Governo trai prioridade do pré-sal e etanol ao quase incentivar o carro elétrico, que Lula vetou


A inovação tecnológica está provocando o governo a falar línguas estranhas, como os possuídos em cultos evangélicos. Levado ao pé da letra o que dizem alguns ministros, o petróleo do pré-sal está condenado. Melhor nem começar. O etanol, e por associação o motor flex, então, é coisa do passado. O futuro seria o carro elétrico.

Tais impressões vieram da decisão do ministro da Fazenda, Guido Mantega, de chamar a Brasília, no último dia 25, os dirigentes do setor automobilístico para o que seria o anúncio de um plano de incentivo à produção de carro elétrico. Era um pacote de corar até os mais “pidões”: haveria redução de IPI, ICMS, IPVA e do Imposto de Importação. Epa! Mas não seria para incentivar aqui a produção?

Que seja. O presidente Lula mandou Mantega se despir da fantasia de ministro da indústria e cancelar o tal anúncio. Os executivos das montadoras, que o aguardavam no auditório da Fazenda, ficaram sem entender. Lula também. Informado por alguém, o que torna tudo estranho, já que não se faz nada neste governo sem seu aval, Lula suspendeu o programa do carro elétrico, temendo seus efeitos sobre a produção dos veículos flex e o desenvolvimento do etanol.

O ministro do Desenvolvimento, Miguel Jorge, foi apontado como o mensageiro, junto a Lula, do imbróglio que Mantega estava criando. O ministro negou a colegas de governo. Mas isso é irrelevante.

Fato é que não há convivência pacífica entre o carro elétrico e o motor flex, como supõem analistas do BNDES. O motor elétrico é uma tecnologia de ruptura, conforme desenvolvimento nos EUA e na China — os países onde essas pesquisas estão mais avançadas.

O álcool de biomassa (de cana no Brasil, milho nos EUA) é tratado como tecnologia de transição. O etanol que compete com a opção elétrica é sintético, derivado do processamento de resíduos, como o lixo orgânico e os restos agrícolas, entre os quais o bagaço da cana-de-açúcar, cuja celulose pode transformar-se em combustível.

O que será? O governo de Barack Obama destinou US$ 7,5 bilhões em subsídios, de um total de créditos de US$ 25 bilhões a montadoras e fabricantes de componentes, para desenvolver motores que elevem a 25% a economia de combustível sobre o nível de 2005. O programa também contempla as novas energias. Por ora, os sinais são de que a indústria automobilística dá preferência ao carro elétrico.
Adivinhando o futuro
A superioridade da propulsão elétrica foi reconhecida por Mantega e pelo ministro de Ciência e Tecnologia, Sérgio Rezende, aliado na discussão dentro do governo sobre o futuro dos combustíveis.

Para Rezende, conforme declarações à imprensa, o veículo flex é o presente, e o carro elétrico é o futuro. O país, afirmou, não pode ficar à margem “desse novo mercado”. Disse mais, segundo o boletim Inovação Unicamp: “Estamos tocando o desenvolvimento do carro elétrico (...) com o dinheiro dos fundos setoriais. Precisamos de mais”. A ser isso, e não é como constata o veto de Lula, uma parte do governo já decidiu um padrão que até nos EUA está indefinido.
EUA esperam o campeão
Em nota divulgada no último dia 26, por coincidência, um dia após Mantega chamar as montadoras para o anúncio frustrado do incentivo ao carro elétrico, o Departamento de Energia dos EUA informou que não há, pelo menos ainda, nenhuma tecnologia e processo vencedor.

“O intenso processo de revisão técnica e financeira [do programa de apoio à eficiência energética] não é focado na escolha de uma única tecnologia em detrimento de outras”, diz a nota. Ela “visa promover múltiplas abordagens para se alcançar uma economia de combustível eficiente”. Ao mercado caberá eleger o padrão campeão.
Implicações profundas
A posição do governo Obama é chave para a decisão sobre o padrão de motor ou combustível que ditará o curso futuro dos transportes no mundo. Além de maior mercado consumidor, o desenvolvimento mais avançado está nos EUA. A China também está nessa corrida, mas tem com os EUA um acordo de desenvolvimento conjunto de tecnologia na área de engenharia automotiva e de novas energias.

O padrão do carro elétrico será o vencedor? É possível. Nos EUA, o rebate de US$ 7,5 mil, tanto quanto na China, dado pelo governo aos carros da geração sem petróleo é um fluido poderoso. Mas isso terá implicações profundas. No Brasil, desmonta as prioridades do etanol e da exploração do petróleo do pré-sal — ao menos no volume de investimento previsto. É o que o ministro Rezende e seu colega Mantega encaminharam, ainda que não tivessem essa intenção.
Decisão sem reflexão
A hiperatividade do governo Lula, ainda mais em fim de mandato, é um risco. Muitas decisões estão sendo tomadas ou cogitadas sem que as consequências pareçam bem avaliadas. Os investimentos volumosos no pré-sal, com a Petrobras como operadora exclusiva, por exemplo, só se justificam se o petróleo mantiver a sua hegemonia como fonte de energia no mundo. Não há essa certeza — e o desastre ambiental do vazamento de petróleo no Golfo do México a tornou mais incerta.

No governo, se discute de carro elétrico a uma montadora nacional. Da internacionalização do etanol a novas refinarias para receber o óleo do pré-sal, refiná-lo e exportá-lo. Tudo isso é conflitante. Talvez a Petrobras devesse também considerar outras energias, sem pôr todas as fichas no pré-sal. Está faltando abrir a discussão.

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