terça-feira, maio 25, 2010

ARNALDO JABOR

O mistério do gambá gigante


ARNALDO JABOR


O GLOBO - 25/05/10


Há seis anos, escrevi um artigo que repito, em parte, pois lembro emocionado que dali saiu o desejo profundo de fazer o filme "A Suprema Felicidade", que estou finalizando agora.
Era um artigo em que meu filho, então com 4 anos, perguntava sobre meu passado. Lembro que pensei: "Acho que vou filmar coisas que vi e vivi na adolescência; acho que talvez haja nisso uma verdade maior do que buscar teses ou certezas sobre a vida hoje"... Não é um filme biográfico, nem de época. Ao contrário, é um filme que tenta captar o que há de permanente no curso dos anos que passaram. Como disse o Fellini, "a única objetividade que conheço é a subjetividade".

Hoje, só há um enorme presente e um passado que nos parece uma decadência em preto e branco. Perdemos a pista do que éramos ou até mesmo do que pensávamos ser.
O artigo era mais ou menos assim: "Antigamente, quando eu era pequenininho..." - com essa frase mágica eu cortava qualquer choro de meu filhinho, qualquer bagunça em curso e ele subia em meu colo de olhos abertos, lágrima secando, largando a geleca trêmula no chão, para ouvir as histórias de meu passado.
"Papai, antigamente não tinha DVD?". "Não". "Não tinha televisão?". "TV estava começando, tinha mais rádio". "Tinha Homem Aranha?". "Acho que não; mas, tinha o Tocha Humana, tinha o Homem de Borracha, tinha Super-Homem, mas só apareciam no gibi".
"O que é ‘gibi’?" "revista de quadrinhos, respondo, mas tinha Príncipe Submarino, que hoje não tem mais, um super-herói que lutava no fundo do mar contra os polvos malvados e as lulas venenosas". "E ele não morria afogado?" "Não, meu filho, porque ele era meio ‘peixe’ também". "E pescavam ele?". "É... tinha uns homens malvados que queriam pescar ele, mas ele era craque".
"E tinha você, antigamente?". "Eu?". "É... você - com seu papai e sua mamãe?". "É, filho, tinha... tinha eu... mas eu era pequenininho também... olha aqui no retrato". "Por que você está chorando no colo do seu avô?". "Não sei; eu acho que já era vocação ha! ha!".
"Quem eram seus amigos?". "Bem... tinha o Bertoldo, o Bertoldinho e o Cacasseno (personagens de um livro de histórias) e também o meu amigo Albertinho Fortuna..." (não sei por que transformei esse cantor popular dos anos 50 num "amigo de infância"... Sempre achei graça nesse nome: "Albertinho Fortuna"...).
"E vocês caçavam o gambá gigante?". "Sim; a gente ia lá na floresta, cada um com um pau na mão e subíamos até a caverna do gambá gigante, que ficava no alto do Corcovado". "Lá onde tem o ‘Quisto Redentor’?". "Isso, filhinho; a gente ia subindo a pé porque antigamente não tinha o trenzinho e, quando chegávamos perto da casa do gambá gigante, a gente sentia o cheiro... argghhhh... era um cheiro horroroso e aí não adiantava nem bater nele; a gente gritava de fora, tapando o nariz: ‘Gambá-gigante! Sai daí!’ Aí, quando o gambá saía, zangado, porque estava dormindo, e ia atacar a gente, o Albertinho Fortuna pegava um vidro de perfume Coty e tacava nele e aí o gambá gigante ficava cheirozinho e ficava amigo da gente... E pronto... E aí todo mundo ia dormir, feito você, agora...".
E aí, enquanto meu filhinho começava a dormir, pensando no gambá cheiroso, eu pensei em sua pergunta profunda: "Pai, tinha você, antigamente?".
Bem - respondo para mim mesmo - antigamente, tinha eu, outro "eu", diferente desse casca-grossa de hoje... tinha nossa casinha de subúrbio, pequena, com quintal, galinha e mangueira e, fora de casa, tinha minha curta paisagem de menino: rua, poste, fogueira no capinzal, a luz de carbureto do pipoqueiro, a luz nas poças com a lua tremendo na água, balões coloridos no céu, trêmulos de lanterninhas, balões-tangerina, balões-charuto. De dia, tinha o sol que era meu, a chuva, que era minha, tinha as nuvens girafa, as nuvens-camelo, que eu olhava deitado no chão onde as formigas eram minhas, com meus caramujos nas folhas deslizando em sua gosminha madrepérola...
Uma vez, houve um grande eclipse, e eu fiquei olhando minha família olhando o sol negro, através de cacos de vidro escuros e, eu me lembro, tive a sensação dolorida de que a casa, papai de uniforme de capitão, minha irmãzinha chorando, a triste empregada com pano branco na cabeça, as árvores, as galinhas, tudo ia passar, e que nós íamos nos apagar também, como o sol, tudo indo para longe, como os urubus, mais longe, quase no infinito, na bruma.
Nas ruas, tinha uma luz mortiça nas janelas das casas, com o som do rádio com as novelas deprimentes e o seriado do "Capitão Atlas", tinha os amores impossíveis, os suicídios com guaraná e formicida, as luas de mel fracassadas, as TVs em preto e branco, tinha um Brasil mais micha, cambaio, mas bem mais brasileiro que hoje, em seu caminho que o golpe de 64 interrompeu e que, agora, essa mania vertiginosa de "Primeiro Mundo global" acabou matando à tapa. Hoje, essa pobreza é disfarçada pela falsa exuberância de um progresso que fabrica ratos verdes com genes de "águas-vivas", mas não consegue diminuir a miséria e a destruição da natureza.
E eu penso: "Antigamente, filho, não tinha esse povo arrebentado, dividido, tonto. Era uma pobreza mais pobre, mas menos - como direi? - menos insolúvel. Tinha uma nacionalidade ilusória sim, com o povo apinhado nos bondes, mais burro que hoje, sem defesas, mas ainda havia formas possíveis de consertar, apesar de acharmos que bastava o grito das massas e a vontade de justiça para que um novo país se realizasse. Em 63, não sabíamos ainda que a democracia custaria tanto. Havia um "vazio" no Brasil; mas era um vazio que dava ideia de que ia surgir uma sociedade nova, mesmo num futuro cheio de urubus.
E aí, eu me perguntei, vendo meu filhinho dormir: "Como fazer, meu filho, para restaurar aquela ideia de Brasil, sem fugir das regras implacáveis da vertigem global?". Eu não sabia e não sei ainda. Nem ele - sonhando com o gambá gigante, sob a voz melodiosa de Albertinho Fortuna, cantando por cima do tempo.

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