quarta-feira, abril 07, 2010

RUY CASTRO

Dívida cruel

Folha de S. Paulo - 07/04/2010
 
"O que teremos de pagar por tanta beleza?", perguntou o poeta Ezra Pound a respeito de Veneza. Pound, que morou e morreu por lá, sabia a resposta: há "acqua alta", a água que sobe um pouco todo ano, há séculos, e, um dia -até 2100, dizem os apocalípticos-, acabará por submergir a cidade. Nesse caso, Veneza estará pagando pela ousadia de seus arquitetos de construir uma cidade que, na sua imodéstia, podia competir com a inspiração divina.
Mas, no caso do Rio, a beleza se originou dessa própria inspiração dita divina. Ou terão sido os homens os responsáveis pelo recorte da baía, o gigante de pedra, o traçado das areias, a onipresença do verde? E, sendo assim, por que teríamos de pagar? A não ser que fosse por isso mesmo -porque, embora não soubéssemos, previa-se uma espécie de pedágio pelos séculos em que tivemos o Rio para nós.
Pode ser também que nosso crime seja o de não termos cuidado dessa beleza como deveríamos. Fomos soberbos com suas matas e imprevidentes com suas encostas, impermeabilizamos seu chão e aprisionamos suas águas. Por que o Rio, que, nos séculos 17 e 18, tomou brejos, pântanos e alagadiços, não consegue conter a água que cai do céu? Mas, também nesse caso, por que a culpa acumulada durante várias gerações teria de ser expiada justamente na nossa vez?
Há cem anos se sabe que inundações são inexoráveis na zona do Maracanã, na lagoa Rodrigo de Freitas, no Jardim Botânico. Em jovem, eu próprio já atravessei a praça da Bandeira e os largos da Lapa e do Machado com água pela cintura. E a cidade, que começou a subir os morros em 1565, não se preparou para quando os morros resolvessem deslizar em direção à ela.
Apenas no último meio século, tivemos 1966, 1967, 1988, 1996 e, agora, 2010. Chega de pagar.

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