sábado, abril 17, 2010

ROBERTO POMPEU DE TOLEDO

REVISTA VEJA
Roberto Pompeu de Toledo

Os quinze dias do governo Tancredo

"Especular sobre o que teria sido seu governo equivale 
a indagar: e se Getúlio não tivesse se suicidado? E se Jânio 
não tivesse renunciado? Ainda assim, a questão incomoda"

Quem quiser se aprofundar em Tancredo Neves tem novo material disponível. Aos 25 anos de sua morte, a ser completados neste 21 de abril, o livro Diário de Bordo, de autoria do embaixador Rubens Ricupero, oferece um relato dos bastidores da viagem que, como presidente eleito, Tancredo fez ao exterior, entre 24 de janeiro e 7 de fevereiro de 1985. O livro recupera anotações do autor, membro da comitiva, tomadas no calor da hora. O ex-chanceler Celso Lafer, num apêndice ao livro, chama aqueles dias de contatos com governantes de Itália, França, Portugal, Espanha, Estados Unidos, México e Argentina de "o momento presidencial de Tancredo". Imaginava-se que seria o primeiro de muitos. Acabou sendo o único. O Diário de Ricupero tem o sabor de abertura de uma ópera que não houve.
O Tancredo que surge do livro é um político conservador ("Mais do que eu imaginava", escreve Ricupero a certa altura), cauteloso para não ferir as suscetibilidades dos militares, atrapalhado diante dos temas da política externa, seguro quando se tratava da economia, e sem sinal da doença que, dois meses e meio depois de encerrado o périplo, o mataria. No avião, a caminho de Washington, Ricupero notou que Tancredo, refugiado na leitura do Washington Post, manteve-se distante das conversas. Estranhou. Tancredo não lia bem inglês, por que tanta atenção ao jornal americano? Depois se soube que lhe caíra uma obturação, o que lhe dificultava a fala. Já em Washington um dentista foi convocado ao hotel, o que teria provocado as versões posteriores de que um médico havia sido chamado com urgência. Ricupero, sempre muito próximo do presidente eleito, de nada soube, na questão da saúde, senão da crise do dente.
Tancredo caprichava na retórica, para conquistar os interlocutores. Em Lisboa, disse que todo brasileiro, ao acordar, tem dois pensamentos, um para Deus, outro para Portugal. Em Washington, como observa Ricupero, chegou perto da famosa definição de Juracy Magalhães ("O que é bom para os EUA é bom para o Brasil") ao afirmar, numa coletiva de imprensa, que "tudo o que se fizer para reforçar e fortalecer o Brasil estará sendo feito para reforçar e fortalecer os interesses dos EUA". A declaração prenunciava uma política externa mais pró-americana do que a dos militares, mas Tancredo era matreiro, como se sabe. Ele precisava dos americanos para cuidar do problema que, junto com a inflação, compunha sua dupla herança maldita: a dívida externa. O compromisso seguinte, naquele dia, foi uma dura cobrança do secretário de Estado George Shultz. Se o Brasil não cumprisse os acordos com o FMI, não haveria acordo com os bancos sobre a dívida. Prenunciava-se um tempestuoso início para a Nova República.
A teologia da libertação foi tema recorrente na viagem. Dizia Tancredo que em Roma o papa João Paulo II lhe revelara preocupação com os padres esquerdistas. Na conversa com o então vice-presidente George Bush (o pai), o próprio Tancredo condenou o movimento, mas diminuiu-o como uma "moda" que passaria. No capítulo das gafes, a pior foi dizer em Lisboa que o império africano de Portugal lhe havia sido "usurpado". Na política externa, até ser alertado pelos diplomatas, confundia o conceito de Terceiro Mundo com o Movimento dos Não Alinhados. Quanto ao regime brasileiro que estava a ponto de suceder, chamava-o de "autoritário", jamais de ditadura. Numa entrevista em Portugal, ao lhe perguntarem se o ex-chanceler Azeredo da Silveira, então embaixador em Lisboa, seria confirmado no cargo, respondeu que outro bom nome era o do general Walter Pires. Pires, ministro do Exército, era tido como um dos duros do governo Figueiredo. Ao cortejá-lo, Tancredo atingia o ponto extremo na estratégia de acomodação com os militares.
Tancredo Neves, figura-chave da redemocratização, político experimentado e homem sábio, é uma pedra no fluxo da história recente do Brasil. Especular sobre o que teria sido o seu governo equivale a perguntar o que teria sido se Getúlio não tivesse se suicidado, se Jânio não tivesse renunciado, ou mesmo, lá atrás, se o patriarca José Bonifácio não tivesse sido afastado tão cedo do poder. Está fora do nosso alcance rebobinar a história. Ainda assim, a questão incomoda. E se…? Na Argentina, última escala da viagem, alguém comentou com Tancredo: "Larga gira, presidente", querendo dizer que fora grande seu giro pela Europa e Américas. Ele entendeu mal. Achou que o comentário se referia à sua longa e rica carreira. Respondeu: "É, terei o necrológio mais comprido do Brasil". Até agora, o necrológio está sendo feito.

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