terça-feira, abril 20, 2010

ARNALDO JABOR

Só os anjos não têm sexo
ARNALDO JABOR
O GLOBO 20/04/10

Os olhos do papa me inquietam. São olhos frios, perscrutadores, inquisitivos. O corpo se mexe, sob o manto rubro e dourado, os gestos são eclesiásticos, mas os olhos são fixos, defensivos, preocupados em esconder os desvios de um dogma superado e "inevitável". Nesta onda de denúncias contra os padres pedófilos, seus olhos ficaram mais duros. Não digo que ele seja conivente com a pedofilia, mas são olhos desconfiados, olhos onde há medo das mutações do mundo.
Claro que o celibato não é a única causa da pedofilia na Igreja. Mas a própria escolha da vida religiosa já é uma negação alucinada da sexualidade - se a força máxima da vida é esmagada, a Igreja vira uma máquina de perversões. Claro. Pedofilia e homossexualismo pairam no ar de qualquer internato religioso.
Alguns religiosos dizem que a pedofilia não é resultado direto do celibato, pois o padre insatisfeito poderia procurar um adulto, como fazem tantos no interior do país, onde, diz a lenda, as mulheres amantes de batinas viram "mulas sem cabeça".
O problema é que em colégios e conventos há a facilidade de pupilos dóceis, a obediência reverencial, o medo infantil... Além disso, procurar um adulto seria assumir uma sexualidade plena, da qual o noviço foge desde o início. Talvez vivam a fantasia de que molestar uma criança seja um pecado venial, incompleto, infantil, uma decorrência perdoável da proibição da Igreja. O pedófilo também é infantilizado.
No velho colégio de padres onde estudei, a entrada dos alunos já era um desfile de velada pedofilia. O padre reitor - Ahh, tempos antigos de batinas negras... - postava-se imóvel na porta da entrada, numa pose paternal e severa, com as mãos oferecidas para abençoar os alunos. Passavam por ele duas filas de meninos, beijando suas mãos. Havia algo de veadagem naquilo, aquela negra batina imóvel como um manequim, as mãos beijadas por mais de 500 meninos de calças curtas. Ainda me lembro do vago cheiro de sabonete e cuspe na mão do padre.
Eu via as mães dos alunos, lindas, com seus penteados e decotes imitando a Jane Russel ou Ava Gardner, fazendo charme para os padres enlouquecidos pela castidade obrigatória. E eu me perguntava: "Meu Deus..., por que padre não pode casar?". Lembro-me do tremor dos jovens sacerdotes, excitados pelas madames pintadíssimas, trancando-se em negras clausuras, esvaindo-se no "vício solitário".
E esses mesmos padres nos diziam: "Cada vez que vocês se masturbam, morrem milhões de pessoas que iam nascer. É um genocídio! Igual ao que o Hitler fez!". E nós, além do pecado, sofríamos a vergonha de ser pequenos "hitlers" de banheiro. Eu pensava: "Por que tanta onda sobre nossos pobres pintinhos, por que essa energia que sinto em minha carne é criminosa?".
A masturbação era um crime inafiançável. Iríamos queimar no fogo por toda a eternidade. Lembro-me da descrição da eternidade no inferno: "Imaginem que o planeta seja um grande diamante duríssimo. De cem em cem anos, um passarinho vem voando e dá uma bicadinha na Terra. Só no dia em que toda a Terra for esfarinhada pelas bicadinhas, terminará a eternidade". E eu sofria, me esvaindo nos banheiros, pensando naquele passarinho que bicava o mundo, enquanto eu acariciava o outro "passarinho" se preparando para uma vida de traumas e medos.
No filme que acabo de fazer, há essas cenas, interpretadas por dois grandes atores - os "padres" Ary Fontoura e Jorge Loredo (o "Zé Bonitinho").

No colégio, tudo era sexo dissimulado. Essa palavra terrível estava em toda parte, como uma ameaça vermelha. O diabo nos espreitava detrás da estátua de santa Tereza em êxtase, nas coxas dos anjinhos nus, nos seios fervorosos das beatas acendendo velas.
A angústia da proibição sexual era visível: rostos mortificados, berros severos e excessivos nas aulas, castigos sádicos, perseguições a uns e carinhos protetores a outros.
Eu mesmo fui assediado por um padre que era notório "cantador" de menininhos; ele fazia mágicas para ser popular e, um dia, tentou me beijar num canto da clausura. Criado na malandragem das ruas, fugi em pânico. E falei disso em confissão com outro padre, que mudou de assunto, como se fosse uma impressão minha, como se a pedofilia fosse uma prática improvável, exatamente como os cardeais norte-americanos fizeram. Há, sim, uma tolerância velada com esses desvios criados pelo antigo dogma.
A mim ensinaram que o prazer era um crime. A partir daí, tudo ficava manchado de culpa; a alegria era falta de seriedade, a liberdade era um erro, as meninas eram seres inatingíveis com seus peitinhos e bundinhas. Até hoje, vivo dividido entre as santas e as "impuras"; quantas dores senti na vida por esses ditames que transformavam as mulheres em perigos, em "Liliths" demoníacas, tão ameaçadoras quanto o intenso desejo que tínhamos por elas. A mulher, como Eva ou Pandora, era a origem de todos os males. Delas saíam a vida e a morte, delas saíam o prazer pecaminoso, o mal do mundo. Essa doença mística gera desde a "burka" até o "strip-tease", numa antítese simétrica.
O problema da Igreja com o sexo leva-a a uma compreensão quebrada da vida, leva-a a denegar a Aids, a condenar o aborto, o controle social da natalidade e a outros erros maiores, advindos de um vazio originário, desde o Concilio de Latrão em 1123. Sem o sexo, os religiosos seriam quase "anjos", mais próximos de Deus.
Uma das grandes desvantagens da Igreja Católica diante de outras religiões é o celibato. Daí, em cascata, surgem problemas que justificam a queda do prestígio da Igreja na era do espetáculo e da derrubada de certezas.
Hoje piorou. O mundo virou uma incessante paisagem de bundas e seios nus, da hipersexualização que nos espreita no trânsito, nas ruas, na TV. Já imaginaram esses padres vendo as gostosas sexy do momento, trancados em escuras celas, sob o voto de castidade? Noite escura, sino batendo e a BBB nua na capa da revista? Essa é a minha ideia de inferno.

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