sábado, março 20, 2010

MAÍLSON DA NÓBREGA


REVISTA VEJA
Maílson da Nóbrega

Um duplo atentado

"O preconceito marxista contra a propriedade sobrevive 
nos corações e mentes do Movimento dos Trabalhadores 
Sem Terra (MST) e dos formuladores do malsinado programa de Lula"

No Terceiro Programa Nacional de Direitos Humanos, do governo Lula – que contém um amontoado de ideias autoritárias –, há um duplo atentado ao direito de propriedade: (1) aceita-se como natural a invasão de imóveis rurais e urbanos; e (2) viola-se a independência dos juízes, que não mais poderiam emitir liminares determinando a desocupação.
De fato, antes de adotar sua decisão, o juiz teria de realizar "audiência coletiva com os envolvidos, com a presença do Ministério Público, do poder público local, órgãos públicos especializados e Polícia Militar". Ou seja, uma assembleia que poderia intimidar o magistrado.
O direito de propriedade começou a surgir no século XVI sob o impulso do liberalismo e dos ideais iluministas. É parte do conjunto que inclui a liberdade do indivíduo perante a sociedade e o estado. Antes, a propriedade privada já era reconhecida. A novidade foi o estabelecimento de regras que a defendiam do arbítrio e dos predadores.
Levou algum tempo para que o direito de propriedade se firmasse como um dos grandes avanços da civilização. No século XVIII, Rousseau dizia que propriedade é que seria roubo, e não a sua espoliação. No século seguinte, Proudhon falava que ela seria a causa dos crimes e de misérias provocadas pelo homem. Influenciado por essas ideias, Karl Marx atribuiu à propriedade a origem de todos os males.
Por isso, Marx pregou a abolição da propriedade privada e sua coletivização sob controle do proletariado. Foi um desastre. Cerca de 100 milhões pereceram sob o tacão do totalitarismo comunista. Mesmo assim, o preconceito marxista contra a propriedade sobrevive nos corações e mentes do MST e dos formuladores do malsinado programa de Lula.
A entronização do direito de propriedade nas sociedades avançadas (e agora também na China) tem seu marco institucional mais relevante na Revolução Gloriosa inglesa, de 1688, que destronou o rei James II. A queda do monarca contou com amplo apoio popular, que se deveu, entre outras razões, a atos atentatórios à propriedade.
Em obra monumental (1688 – The First Modern Revolution), Steve Pincus assinala inúmeras queixas da população contra esses atos. O Judiciário não era garantia. James II demitiu doze juízes em seu reinado de menos de quatro anos, tanto quanto seu antecessor, Charles II, em 25 anos. Nomeava apenas juízes favoráveis ao absolutismo.
Com a revolução, os reis perderam o poder de demitir juízes. O poder supremo passou da monarquia para o Parlamento, que concedeu independência ao Judiciário e se dedicou intensamente, nos anos seguintes, a rever as restrições à hipoteca de bens e ao uso da propriedade em atividades econômicas.
Nos 150 anos posteriores a 1688, mais da metade das leis aprovadas normatizava o direito de propriedade. Regras medievais que inibiam o investimento foram substituídas por outras que permitiram a agricultores, industriais e comunidades aproveitar as oportunidades que surgiam com o novo ambiente.
Até hoje se discute por que a Revolução Industrial ocorreu na Inglaterra e não na França, na China ou no Japão. Não há dúvida, todavia, quanto ao papel do direito de propriedade no processo e à sua contribuição para a ascensão inglesa à condição de potência mundial no século XIX.
O direito à propriedade foi consagrado na Declaração Universal dos Direitos Humanos da ONU (1948). "Toda pessoa tem direito à propriedade, só ou em sociedade com outros. Ninguém será arbitrariamente privado de sua propriedade." Direito de propriedade e Judiciário independente são, assim, faces da mesma moeda. O programa de Lula investe contra essas duas conquistas.
A infeliz ideia foi criticada pela Associação dos Magistrados Brasileiros (AMB). A entidade repudia o cerceamento da autoridade do juiz, que ficaria condicionada "à realização de uma audiência pública com viés não raras vezes político, postergando ainda mais a prestação jurisdicional pretendida". Por tudo isso, se não for abortada, a proposta nos levará às trevas.
P.S. – Eu concluía este texto quando se anunciou a possível revisão dessa e de outras propostas autoritárias. Mesmo assim, dado que seus defensores continuam no governo, vale manter o alerta.

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