quinta-feira, março 04, 2010

DEMÉTRIO MAGNOLI

Fotografias de Havana

O ESTADO DE SÃO PAULO - 04/03/10


David Nicholl, um neurologista britânico, coordenou em 2006 a campanha internacional da comunidade médica contra a alimentação forçada de prisioneiros na base americana de Guantánamo. Ele explicou que, nos EUA e na Grã-Bretanha, as regras de ética médica proíbem tal prática. Em Cuba, a ética médica, como tudo mais, oscila ao sabor da vontade do Partido-Estado e ninguém inseriu tubos alimentares em Orlando Zapata, o preso político que morreu após 85 dias de greve de fome. Um artigo do Granma, o jornal oficial castrista, responsabilizou os EUA e os dissidentes cubanos pelo desfecho. Lula, em visita a Cuba, lamentou que "uma pessoa se deixe morrer por uma greve de fome", algo equivalente a culpar a própria vítima. Marco Aurélio Garcia preferiu banalizar o mal, explicando com sua peculiar cupidez que "há problemas de direitos humanos no mundo inteiro". Essa gente não tem vergonha na cara?

A linguagem da ditadura militar no Brasil era idêntica à do regime cubano e de seus bonecos de ventríloquo brasileiros. Vladimir Herzog morreu em virtude de seus atos subversivos e, no fundo, por responsabilidade do "comunismo internacional". Herzog era qualificado como um "terrorista", mesmo se nunca cometeu um ato de violência, tanto quanto Zapata era qualificado como um "mercenário". Lula et caterva estão ecoando as vozes dos tiranos "de direita", quando reverberam as sentenças dos seus amigos tiranos "de esquerda". As coisas que disseram em Havana constituem uma desgraça nacional. Eles falam sobre nós: nossa história e nosso passado recente.

O inefável Marco Aurélio Garcia mencionou Guantánamo, como Dilma Rousseff mencionara Abu Ghraib para "normalizar" a selvagem repressão em curso no Irã. Anos atrás, nos tempos de George Bush, o governo Lula esquivava-se de tocar nesses temas melindrosos. O silêncio, agora se sabe, não derivava da covardia, mas de uma forma obscena de esperteza: eles guardavam Guantánamo e Abu Ghraib num cofre, como uma apólice de seguro para o futuro. Os parasitas da tortura de Bush usam hoje aquela apólice para desculpar as violações de direitos humanos de seus aliados ideológicos ou circunstanciais. Essa gente não tem nenhum princípio?

Meses atrás, o ex-senador Abdias do Nascimento, dirigente histórico do movimento negro no Brasil, enviou uma carta de protesto contra o encarceramento do médico cubano e ativista de direitos humanos Darsi Ferrer, que iniciara greve de fome pelo reconhecimento de sua condição de preso político. A carta tinha como destinatários Raúl Castro, Lula e o próprio Ferrer, a quem Abdias suplicava que desistisse da greve de fome. Cuba continuou a recusar o estatuto de preso político ao ativista e não se conhece nenhuma manifestação de Lula a respeito. Ferrer, contudo, atendeu à súplica de Abdias. Agora, no caso de Zapata, Lula criticou a opção do prisioneiro pela greve de fome, mas esqueceu-se de mencionar a reivindicação que o movia, igual à de Ferrer. Nosso presidente não atina para o que acontece em Cuba?

Fidel Castro alcançou notoriedade no dia 26 de julho de 1953, quando comandou um ataque frustrado ao quartel Moncada, em Santiago de Cuba, numa tentativa insurrecional contra a ditadura de Fulgêncio Batista. O jovem Castro foi sentenciado a 15 anos de prisão e enviado ao cárcere da Isla de Pinos, reservada a presos políticos, onde permaneceu menos de dois anos, até ser beneficiado por uma anistia geral. Na Cuba dos Castro, Ferrer, Zapata e duas centenas de outros presos políticos que jamais participaram de levantes armados são declarados criminosos comuns. Zapata morreu para não ser obrigado a usar um uniforme de criminoso. Ele foi assassinado por uma ditadura pior que a de Batista, avessa aos princípios elementares de respeito à dignidade humana. Lula não é capaz nem ao menos de pedir que os irmãos Castro, seus amigos do peito, concedam aos dissidentes encarcerados o direito ao rótulo de presos políticos?

Laura Pollán entregou a Fidel Castro, dois anos atrás, o livro Enterrados Vivos, escrito por seu marido Héctor Maseda, um dos 75 dissidentes sentenciados na Primavera Negra de 2003. O gesto lhe custou o emprego, mas assinalou a criação da organização Damas de Branco, formada por parentes de presos políticos. Enquanto Lula divertia os irmãos Castro, fotografando-os e rindo como uma hiena, Laura carregava uma alça do caixão de Zapata e abraçava em silêncio a mãe do dissidente morto. Dias antes, ela ajudara a encaminhar uma mensagem de presos políticos cubanos solicitando uma palavra do presidente brasileiro em favor da vida do prisioneiro que jogava sua cartada final. O pedido ficou sem resposta, mas não faltou uma ofensa equilibrada sobre os pilares simétricos da covardia e do cinismo: "As pessoas precisam parar com o hábito de fazer carta, guardar para si e depois dizer que mandaram."

A ditadura castrista não matou Zapata quando decidiu não alimentá-lo à força, mas bem antes, ao recusar-lhe o estatuto de preso político, um santuário simbólico da dignidade dos que sacrificam a liberdade pessoal em nome de poderosas convicções. Os assassinos estão cercados de cúmplices, que são os líderes políticos e os intelectuais "amigos de Cuba". No passado ainda recente da guerra fria, nenhuma voz poderia demover o regime de Havana da decisão de fuzilar ou enterrar vivos aqueles que ousavam denunciar o totalitarismo. Hoje, a clique anacrônica aferrada ao poder absoluto num sistema social em decomposição só pode matar na redoma fabricada pela cumplicidade dos "companheiros de viagem".

Zapata morreu porque Lula não disse nada. Ele morreu porque os intelectuais disponíveis para firmarem um abaixo-assinado contra o editorial equivocado de um jornal brasileiro não estão disponíveis para contrariar a "linha justa" do Partido. Com que direito todos eles ainda usam o nome dos direitos humanos?

Demétrio Magnoli, sociólogo, é doutor em Geografia Humana pela USP. E-mail: Demetrio.Magnoli@terra.Com.Br

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