terça-feira, março 16, 2010

ARNALDO JABOR

Cinema tem de exaltar a vida


O GLOBO - 16/03/10

Em 1990, filmei "Amor à Primeira Vista", uma coprodução franco-italiana para a TV que nem passou aqui. Depois, parei - de saco cheio de tanta ansiedade e frustração, os dois sentimentos básicos do cineasta.
As pessoas pensam que filmar é um piquenique. De vez em quando, algum "desconhecido íntimo" me perguntava: "Como é? Quando vai filmar de novo?". Eu respondia: "Sei lá...". E o sujeito continuava: "Adorei aquele seu filme, o ‘Bye Bye Brasil’!..." . "Não é meu" , resmungava. "Ah,,, Cineasta é tudo igual... Aliás, vocês levam um vidão, hein?". E me cochichava, com sórdida cumplicidade: "Vocês comem atrizes às pampas, hein?". E eu, como um "Casanova" discreto: "Nem tanto... nem tanto..." - e fugia, sob a inveja do cara.
Passei 25 anos olhando o mundo através de ângulos de cinema: "Aquela mulher, com uma lente 75mm, daria um close lindo; aquele casal, correndo da chuva, seria um ‘travelling’ legal...".
Agora, matei a fome, pois não aguentava mais ficar apenas como um comentarista vendo o horror do mundo, as vergonhas nacionais. Adoro o vasto mundo do jornalismo e da TV. Mas só política envenena a alma. Digo sempre: "É feito trabalhar no Instituto Butantã... um dia a cobra te morde...".
Agora, 20 anos depois, estou acabando "A Suprema Felicidade", um filme que se passa nos anos dourados do Rio, entre 1950 e 1960. E não é para "conscientizar" ninguém.
Na época do Cinema Novo, vivíamos uma arte que "salvaria" o século, "mudaria as cabeças"; buscávamos o chamado "específico fílmico", utopia de imagem a ser atingida.
Nesse filme só falo das coisas que conheci e vivi. Como dizia o Fellini: "A única objetividade que conheço é a subjetividade". Filmei por amor à arte, essa coisa meio antiga neste mundo atual onde os filmes só têm cenas de três segundos, delirantes maneiras de você ver muito para nada ver. O antigo "autor" ou "diretor" virou um guarda de trânsito para atores: "Vai por ali, vem por aqui...".
O filme que fiz não quer provar nada. Claro que gostaria que fosse uma defesa quase "ecológica" contra a cultura de massas. Mas, quem sou eu para desejar tanto?
No entanto, há sinais de que talvez comece uma renascença artística se partindo do mundo digital.
Por isso, amei o "Avatar" - a primeira superprodução em que a tecnologia ficou a serviço da poesia. Acho que "Alice", do Tim Burton, também vai ser assim. "Avatar" é um filme de autor. Existe ali um grande amor ao cinema, como no último Tarantino, como nos anos 60, quando cinema era paixão.
Lembro-me da última vez em que vi o cineasta francês Louis Malle, no Rio. Falamos dessa paixão, da fumaça dos cigarros "Gauloises", dos paletós surrados dos cinéfilos de Paris, dos papos-cabeça da Nouvelle Vague, da magia do preto e branco, da aura sagrada que os cinemas de "shopping-centers" exterminaram, entre pipocas e cachorros-quentes, esse cinema que hoje é uma extensão das praças de alimentação.
Meses depois, Malle morria de câncer, como o Truffaut.
O cinema sempre buscou as massas; não vivia em guetos como a poesia ou a pintura, mas tinha uma fome de "arte", visível mesmo nos filmes "comerciais", cf. "Cantando na Chuva", por exemplo.
Sem esse amor, cinema é um videogame em que somos as peças. Por isso, me lembro também de Humberto Mauro, o grande cineasta fundador dos anos 20 e 30 que criou uma definição famosa sobre a antiga "Sétima Arte": "Cinema é cachoeira...". Por que ele dizia isso? Já contei isso, mas repito.
Quando ele fazia seus filmes em Cataguases e na Cinédia do Rio, todo amigo que ele encontrava na rua dizia : "Humberto, meu querido, você precisa ir lá no meu sítio filmar a minha cachoeira. Você precisa ver que cachoeira!" E o Humberto Mauro ficava intrigado: "Por que sempre querem que eu filme cachoeiras?".
Um dia, ele deu uma palestra num cineclube e um jovem lançou-lhe a pergunta essencial: "Seu Mauro, qual é a alma do cinema?". Aí, o velho cineasta cunhou a definição eterna: "Cinema, meu filho, é... cachoeira!".
Tentei filmar assim: o fluxo da afetividade, da tentativa de alegria, do desejo de felicidade. Tentei um filme de aventuras emocionais. Arte tem de ser exaltação da vida. E hoje tudo está tão falso, tão virtual que imagino que alguma personagem poderia sair da tela, como em "A Rosa Púrpura do Cairo", e perguntar: "Hei!... Vocês aí - afinal, o que é (ou era) a realidade?". E nós responderíamos: "Realidade" é essa coisa aqui fora e dentro de nosso corpo, fluindo sem parar, é esse rio de signos, essa ilusão dos sentidos, esse mistério que teimamos em deslindar inutilmente, pois fazemos parte dele. "Realidade" é essa coisa sempre além da ciência, sempre além do sentido, do tempo e do espaço, inatingível, pois estamos todos boiando num infinito caldo de cultura, onde "parece" que boiamos; apenas "parece", pois somos também o caldo onde boiamos. A mosca e a sopa são a mesma coisa.
Quanto mais se fazem descobertas, mais fundo é o túnel do mistério. Quanto mais aberta for a máquina do mundo, mais vazia e indecifrável.
Por isso, a melhor metáfora para o cinema é a cachoeira mesmo - uma água que não para de fluir. Não há uma realidade que finalmente se detenha e se configure; buscá-la, tanto no cinema como na filosofia, é fracasso certo. Não há arte ou filme que deem conta do implacável fluir dessa cachoeira que se chama "vida". O drama dos séculos tem sido a tentativa de se alcançar uma resposta estática.
A própria ideia de "paraíso" na Terra esconde (ou comprova) o desejo de parar o espaço e o tempo. O "paraíso" seria um lugar onde não houvesse a morte - nem cinema. Não há "cinema paraíso" (por isso, aquele filme italiano é tão ruim).
Somos uma cachoeira contemplando a outra. Nossas ações têm esse fracasso fundamental: jamais veremos um fim ou um início.
Cinema e vida são cachoeiras, como descobriu Humberto Mauro.

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