quarta-feira, fevereiro 17, 2010

ANDRÉ MELONI NASSAR

Álcool 61%

O ESTADO DE SÃO PAULO - 17/02/10


A Agência de Proteção Ambiental (EPA) dos EUA finalizou a regulamentação para o programa de utilização de combustíveis renováveis em misturas na gasolina e no diesel. A publicação da legislação era esperada ansiosamente aqui, no Brasil, porque um dos biocombustíveis em análise pela EPA é o etanol de cana-de-açúcar. A regulamentação concluiu que o etanol de cana é um "bom biocombustível", ou seja, um combustível renovável que reduz substancialmente as emissões de gases de efeito estufa (GEEs) em relação à gasolina.

Considerar o etanol um bom combustível traz alguma surpresa para nós, brasileiros? Não. Por que, então, o resultado foi recebido com satisfação no Brasil? Esse resultado, embora pareça óbvio, esconde um longo processo de negociação e de reavaliação das posições da EPA. A versão inicial da lei, publicada em maio de 2009, havia considerado o etanol de cana-de-açúcar exatamente o oposto, ou seja, um "combustível ruim" quanto às emissões de GEEs. Especialmente para nós, do Instituto de Estudos do Comércio e Negociações Internacionais (Icone), que estivemos umbilicalmente envolvidos na parte técnica, causou positiva surpresa a atitude da EPA de reconhecer a ajuda dada pelos especialistas brasileiros consultados no decorrer da revisão da legislação.

Diferentemente do Brasil, a regulamentação que determina a utilização de biocombustíveis nos EUA requer que as emissões de GEEs sejam quantificadas para garantir que os combustíveis renováveis contribuam para as metas globais de redução de emissões. A lógica do legislador norte-americano é que só faria sentido misturar etanol à gasolina se o combustível renovável reduzisse substancialmente as emissões de GEEs. Esse "substancialmente" foi definido como 20% de redução no caso do etanol renovável - classificação criada para enquadrar o etanol de milho, 50% de redução no caso do etanol avançado (categoria para o etanol de cana-de-açúcar) e 60% no caso do etanol celulósico. Isso significa o seguinte: considerando que a gasolina emite 98 kg de CO2 equivalente por milhão de BTUs de energia gerada, o etanol de cana, para ser considerado avançado, deveria emitir, no máximo, 50% desse valor (49 kg de CO2e/mmBTU). As emissões calculadas pela EPA apontam para emissões médias de 38 kg de CO2e/mmBTU, 61% menos que as emissões da gasolina. Nem sempre os resultados foram estes. Na primeira versão da regulamentação o cálculo da EPA apontava para emissões do etanol de cana de 72,3 kg de CO2e/mmBTU, ou seja, 26% menos que a gasolina.

O reconhecimento pela EPA da eficiência do etanol de cana-de-açúcar quanto às emissões de GEEs tem duas implicações. A primeira é que a lei norte-americana de segurança energética garante um mercado de, pelo menos, 15 bilhões de litros em 2022 para os biocombustíveis avançados. A segunda é que a EPA deu o primeiro passo para colocar uma pá de cal na discussão sobre as emissões indiretas do etanol de cana.

Combustíveis renováveis de base agrícola, como o etanol e o biodiesel, têm como principal insumo produtivo a terra. À medida que a demanda pelo biocombustível aumenta, ainda que menos do que proporcionalmente, em decorrência dos ganhos de produtividade, a demanda por terra também aumenta. Assim, para um cenário de aumento de demanda pelo etanol brasileiro no mercado norte-americano, que deverá ocorrer por conta da lei de segurança energética, espera-se aumento da área plantada com cana. Se, simultaneamente à expansão da cana, ocorrer aumento da área agrícola total, aumento esse que não estaria ocorrendo se a cana não se tivesse expandido, cria-se uma relação de causa e efeito entre o avanço da cana e a conversão de vegetações naturais. As emissões da conversão da vegetação natural, na presença dessa relação de causa e efeito, passam a ser atribuídas à cana, elevando as emissões de GEEs do etanol. Esse simples e óbvio raciocínio econômico se transformou num dos testes de fogo para o etanol, teste que o brasileiro vai deixando para trás com os novos resultados da EPA. Da versão preliminar para a versão final da regulamentação, as emissões associadas à mudança no uso da terra foram reduzidas em dez vezes.

Dentre as diversas razões que explicam essa guinada de avaliação da EPA, além do impecável trabalho desenvolvido pela União da Indústria de Cana-de-Açúcar (Unica) e pelo governo brasileiro, está um trabalho técnico de alimentação da EPA com informações e análises que permitissem ao órgão do governo norte-americano entender a dinâmica da expansão da produção agropecuária no Brasil e seus efeitos na conversão de vegetação natural em atividades produtivas.

Essas informações chegaram ao EPA por meio de uma ferramenta que, no Icone, batizamos de Blum (Brazilian Land Use Model, em português, Modelo Brasileiro de Uso da Terra) e, na EPA, ficou conhecida como Módulo Brasileiro. Desenvolvido pelo Icone, em conjunto com um grupo da Universidade de Iowa, nos EUA, o Módulo Brasileiro foi usado como ferramenta pela EPA para quantificar os efeitos da expansão da cana na fronteira do cerrado e da Amazônia brasileiros e, consequentemente, calcular as emissões de GEEs. Antes de usar o Módulo Brasileiro, na publicação da primeira versão da regulamentação, a EPA chegou à conclusão de que, para cada hectare de expansão de cana, ocorria a conversão de 1,4 hectare na fronteira, sobretudo na Amazônia. Com o Módulo Brasileiro, o mesmo hectare de cana provocaria 0,6 hectare de conversão na fronteira - quase nada na Amazônia -, já que parte da expansão da cana seria absorvida pela intensificação de pastagens, sem prejuízo da produção de carne e leite.

Ao reconhecer que havia a necessidade de revisar os números das emissões do etanol de cana, e ao decidir fazer isso a partir de contribuições de especialistas brasileiros, a EPA mostrou que nem sempre a política está à frente da ciência.

André Meloni Nassar é diretor-geral do Icone. E-mail: amnassar@iconebrasil.org.br

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