quarta-feira, janeiro 13, 2010

ROBERTO DaMATTA

A coluna assombrada

O Globo - 13/01/2010


Como somos uma sociedade construída em cima da escravidão; da arrogância e da ignorância aristocrática e senhorial; do poder autoritário e revanchista que pensa primeiro nos nossos; da estadomania que tudo resolve, prevê e legaliza para justamente produzir o oposto, temos sido recorrentemente assombrados por fantasmas bem conhecidos. O maior deles é o da desonestidade governamental que cinde pela raiz o elo entre Estado e sociedade.

Nossas almas do outro mundo aparecem na televisão recebendo o fruto de seu vil trabalho: os pacotes de dinheiro vivo que, escondido na cueca, na meia ou em elegantes sacolinhas, têm o dom de revelar o estado geral da nobre arte de roubar o dinheiro público impunemente. Esse apanágio dos políticos brasileiros de todos os poderes e níveis. Que roubam planejadamente porque têm a mais absoluta certeza de que jamais serão punidos. Entremeados, porém, a esses fantasmas rotineiros surgem os dos desastres que causamos porque não conseguimos, apesar de todas as repúblicas e cidadanias, seguir nenhuma norma. A tragédia dos deslizamentos, que inaugura 2010 contando desaparecidos, é um exemplo flagrante da aplicação de um dos mais ofensivos slogans jamais inventados por um político e ex-prefeito: “É ilegal, e daí?” Esse “estou me lixando” para a lei porque ela é boa para ser escrita, mas não para ser honrada, confirma o nosso caminho hierárquico. Quando o fantasma do roubo do dinheiro público aparece, a culpa é sempre dos subordinados; ou surge na forma de um cinismo ofensivo quando um Arruda, cercado de asseclas, diz que perdoou para ser perdoado de modo que os que estão do topo livram-se automaticamente de qualquer responsabilidade.

É uma ofensa imperdoável aos cidadãos honestos que ele continue tocando as suas 2 mil e tantas obras sem que se faça uma intervenção para investigar o que foi visto em nossas casas.

Que diferença do outro hemisfério, quando o presidente Barack Obama, em face da incompetência dos serviços de segurança antiterrorista do seu país, e diante do fantasma do terror, assume o erro e a responsabilidade que, afinal de contas, é dele menos como “supremo magistrado da nação”, como gostamos de repetir pomposamente no Brasil, e muito mais como o administrador da justiça, da segurança e do cumprimento das leis que, em crises morais dessa magnitude, cabe ao presidente ou à mais alta autoridade assumir e resolver.

No caso de Angra e da Ilha Grande, dos estados sulinos e da Amazônia, a assombração aparece para todos, mas só os inferiores são responsáveis pelas rezas que imploram o cumprimento das promessas.

Os responsáveis evocam a litania mentirosa do “eu não sabia”. No caso americano, o subordinado sabe que vai ser cobrado porque quem assumiu o erro foi o superior.

A mesma atitude de fuga dos problemas permeia outros fatos. Dom João VI abandonou o reino do qual, pelo credo da realeza, era indissociável do seu corpo físico e espiritual (os reis tinham dois corpos), pois eram responsáveis pelo bemestar moral do seu reino (que incluía o povo e também a natureza).

Dom Pedro I oscilou entre ir ou ficar.

Pedro II administrou institucionalmente, como um estrangeiro. Getúlio deu um tiro no Brasil que estava formado no seu coração e reverteu a crise deflagrada pela tentativa de liquidar a oposição liderada por Carlos Lacerda; e Jânio Quadros renunciou à Presidência, para a qual fora eleito portando uma vassoura que limparia o Brasil dos mensalões, lalaus, malufes e arrudas da época, levando a uma crise institucional da qual até hoje não saímos, como revela esse decreto de mudança cultural centralizador assinado pelo presidente Lula, às vésperas do Ano Novo.

Volta e meia, surgem assombrações. Mas vale a pena assinalar que no Brasil elas voltam para pedir orações e cobrar dívidas, pois como disse num livro escrito faz tempo — “A casa e a rua” —, entre nós, a morte mata mas os mortos não morrem. A saudade que exprime os elos perpétuos com eles patrocina o retorno. Eles são a ponte que sustenta a continuidade entre este mundo e o outro. Tal como no plano político a corrupção e a má-fé são o fantasma de um passado familístico e hierárquico ainda não resolvido.

Nos Estados Unidos, porém, quando surge um fantasma, como ocorreu com uma amiga americana numa casa assombrada na Universidade de Brown, ela — ao ver-se em plena madrugada diante do espectro de um jovem que morrera afogado e ficara ligado à residência que hoje serve de mini-hospedaria para professores visitantes — não hesitou em perguntar em alto e bom som um “what do you want?” (o que é que você quer?). O enfrentamento, contou-me, dissipou imediatamente a assombração. Já no nosso caso, as oscilações expressas em continuidades mal resolvidas fazem com que sejamos eternamente assombrados. Pois aí estão, com as vítimas, os fantasmas da covardia e da corrupção, demandando, como é o seu papel, honestidade e transparência.

ROBERTO DaMATTA é antropólogo.

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