sábado, janeiro 09, 2010

DORA KRAMER

Tratado geral sobre o cinismo

O ESTADO DE SÃO PAULO - 09/01/10

Para o exercício do logro, o governador José Roberto Arruda possui instrumental completo: não conhece limites, menospreza o discernimento alheio, confia na eficácia de seus truques e acha que suas mentiras têm pernas longas.

A ideia de recorrer ao mesmo expediente de 2001, de novo pedindo desculpas por seus pecados alegando ter sido vítima da própria ingenuidade, deve ter-lhe parecido genial.

Afinal, foi muito bem-sucedido na ocasião. Recebeu uma votação extraordinária no ano seguinte para deputado federal e cinco anos depois de renunciar ao mandato e sair escorraçado do PSDB, virou um "case" em matéria de volta por cima, elegendo-se governador em aliança integrada, entre outros, pelo mesmo PSDB.

Nos quatro principais pronunciamentos que fez nesse período para negar e depois se penitenciar de seus delitos, José Roberto Arruda escreveu um perfeito tratado geral sobre a arte de iludir plateias com a feição do pecador contrito.

"Inútil resistir à verdade", disse ele em momento alto de franqueza quando admitiu ao Senado, em 23 de abril de 2001, que cinco dias antes havia mentido naquela mesma tribuna ao negar a violação do sigilo do painel eletrônico e chamar de mentirosa a funcionária que afirmava ter entregado a ele a lista de votantes na cassação de Luiz Estevão, no ano anterior.

Naquele ato de contrição, na véspera de renunciar ao mandato de senador, Arruda se disse vítima da própria cobiça - "o poder estava me levando, pela vaidade exagerada, pela ambição desmedida, a um atalho, a um desvio, que não é o caminho que tracei"- e assegurou ter aprendido a lição: "É um aviso para mudar enquanto é tempo".

Invocava a desproporcionalidade entre o crime e o castigo - "não matei, não roubei, não enriqueci, não desviei dinheiro público!" - e distribuía ensinamentos a respeito da prevalência da ética sobre a ambição.

"Não há nada de errado em ser ambicioso, mas o erro que muitos temos cometido, e eu certamente cometi, é definir a ambição antes de definir a ética." Esta seria a receita contra a tentação de, diante da oportunidade, se reduzir o "rigor ético".

Parlamentar de primeiro mandato à época, Arruda dizia ter sido acometido por "grande dose de ingenuidade".

"De fraqueza, de açodamento. Falhei, fui ingênuo, infantil, descuidado algumas vezes, mas pretendo, com esse gesto (a penitência) que vem de dentro da alma, dar o exemplo de que sempre se pode retomar o verdadeiro caminho."

Daí em diante, a bordo desse discurso, José Roberto Arruda tomou o caminho da reconstrução da carreira. Pediu perdão coletiva e individualmente a quase cada um de seus eleitores, percorrendo bairros de porta em porta, dizendo de seu arrependimento aos cidadãos de Brasília.

Até chegar em 2006 a governador do Distrito Federal e, três anos depois, voltar à cena da transgressão com provas produzidas em operação da Polícia Federal, de como havia, de novo, privilegiado a ambição do poder em detrimento do "rigor ético".

Aliou-se a um esquema de ilicitudes montado pelo antecessor e tomou um atalho para o Palácio do Buriti se elegendo "por dentro" do aparelho. Viciado, e, portanto, aderiu aos vícios.

Conforme ficou demonstrado pela entrega de gabinete, acesso e desenvoltura de trânsito no poder ao homem que operava a corrupção, que viria a se transformar no denunciante do esquema e com ele, Arruda, visto por todo o Brasil em cena amena de transação financeira.

E o que diz agora o penitente de outrora?

Apela por indulto, alega outra vez ingenuidade, alude ao "erro" de ter "permitido que interesses contrariados" ficassem tão próximos dele e mostra que se alguma coisa aprendeu, foi a se aperfeiçoar na arte de ludibriar: "Eu perdoo a cada dia os que me insultam. Entendo as suas indignações pela força das imagens. E sabem por que eu perdoei? Porque só assim eu posso pedir perdão pelos meus pecados".

Ato contínuo pede que o deixem trabalhar sossegado a fim de que "o governo não seja prejudicado" e muitas obras possam ser inauguradas em prol do povo.

Uma síntese do festival de descaramento que assombra o Brasil.

De A a Z

O Plano Nacional de Direitos Humanos é criticado por militares, católicos, ruralistas, congressistas e até gente que fez parte da luta armada.

Em defesa do plano só falaram mesmo até agora o Palácio do Planalto, na figura da ministra Dilma Rousseff, e o Ministério da Justiça, onde foi concebido.

Pelo visto, sem consulta nem discussão prévia com os setores alcançados pelo projeto, cuja abrangência vai da anistia às regras dos planos de saúde, passando pela taxação de grandes fortunas e mudança nos currículos escolares.

Ou, então, o apoio às propostas seja irrelevante porque a intenção não é levar nada mesmo adiante de fato, mas só criar um fato.

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