quinta-feira, novembro 19, 2009

LUÍS FERNANDO VERÍSSIMO

Nove versículos

O GLOBO - 19/11/09

Ainda não li o novo livro do Saramago, Caim, mas sempre me intrigou a figura desse personagem – o Caim, não o Saramago. Caim é o primeiro enigma da Bíblia. Condenado por Deus a errar pela Terra e lavrá-la sem proveito para expiar a morte do irmão, Caim revela seu medo de que “todo aquele que me achar me matará”. Então Deus põe nele uma marca e decreta: “Qualquer um que matar a Caim sete vezes será castigado”. A marca pode ser uma garantia de que o remorso de Caim não será aliviado pela morte, ou pode ser uma bênção secreta, uma obscura aliança entre o Criador e o criminoso. Pois Caim estava claramente destinado a ser outra coisa na narrativa bíblica em vez de proto-vilão. É o construtor da primeira cidade, a que dá o nome do seu filho Enoque. Ficamos conhecendo toda a sua descendência, de Enoque e Tubalcaim, “mestre de toda a obra de cobre e de ferro”, passando por Jabal, “pai dos que habitam em tendas”, e Jubal, “pai de todos que tocam harpa e órgão”. Mas a glória de Caim e seus descendentes, precursores da indústria e das artes, só dura nove versículos. A história que passa a interessar é a de Sete, o terceiro filho de
Adão e Eva. É dele que descende Noé, o da arca, o segundo Adão da criação. A prole de Caim se perde no dilúvio.
Especula-se que as escrituras pegaram emprestado o mito de criação dos quenitas, uma tribo mais antiga do que a de Irael e cujo patriarca se chamava Caim. O assassinato de Abel seria uma reencenação de algum sangrento rito inaugural protagonizado por ele, provavelmente um sacrifício humano, depois tornado abominável pela lei dos judeus. Os ritos de fundação se repetem em várias culturas e quase sempre envolvem algum tipo de sacrifício animal ou humano, e seus perpetradores se transformam em Executores Sagrados, execrados e desterrados, mas ao mesmo tempo festejados, pelos seus crimes providenciais. Isso explicaria a bênção disfarçada de Deus e o respeito da Bíblia com a linhagem de
Caim, que um mero assassino não mereceria.
O sacrifício de Abel repete a imolação com que o Caim dos quenitas inaugura sua nação. A Bíblia concede a Caim e sua prole seus nove versículos de respeitabilidade em honra a este antecedente nobre. Em seguida Caim e suas gerações desaparecem da história e os precursores de tudo passam a ser Sete e suas gerações, até Noé e família, os únicos sobreviventes do Dilúvio, aquele radical ato de autocrítica do Senhor. É como se a Bíblia se desse conta de que estava endossando um ato particularmente sangrento como o rito inaugural da nação humana e mudasse rapidamente de ideia, de personagens e de história.

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