sábado, outubro 24, 2009

J. R. GUZZO

REVISTA VEJA
J. R. Guzzo

Tempo de trapaça

"Nas demais sociedades civilizadas vale o princípio pelo qual
é permitido tudo o que não é expressamente proibido em lei.
No Brasil é proibido tudo o que não é expressamente permitido"

Todo cidadão que acompanha, mesmo de longe, o noticiário político seria capaz de jurar que há uma campanha eleitoral em andamento no Brasil e que diversas pessoas querem suceder ao presidente Luiz Inácio Lula da Silva nas eleições presidenciais de 2010. Há a ministra Dilma Rousseff e o deputado Ciro Gomes, do lado do governo, o governador José Serra, pela oposição, e outros mais. Ao mesmo tempo, o público é informado diariamente de que não há nenhuma campanha eleitoral e nenhum candidato à Presidência. Os comícios não são comícios. A propaganda não é propaganda. Os candidatos não são candidatos. O que é isso tudo, então? É exatamente o que parece, mas o governo e a oposição não podem dizer que é. Podem fazer tudo. Mas não podem falar; aí já seria contra a lei, que, na sua ambiciosa lista de regras destinadas a regular tudo, marca o dia 6 de julho do ano que vem para o começo das campanhas. Como se sabe, temos leis eleitorais rigorosíssimas neste país, possivelmente as mais severas do mundo. Enquanto nas demais sociedades civilizadas vale o princípio pelo qual é permitido tudo o que não é expressamente proibido em lei, no Brasil dos tribunais eleitorais a coisa funciona ao contrário: é proibido tudo o que não é expressamente permitido. É uma surpresa, no fundo, que alguém consiga ser eleito com tanta proibição assim – e a saída para os políticos, inevitavelmente, é trapacear. É o que está acontecendo no momento.

É ruim, porque a campanha eleitoral de 2010, como tantas que vieram antes dela, começa em cima de uma falsificação por atacado da verdade. O presidente Lula, por exemplo, viaja sem parar pelo Brasil fazendo comícios e pedindo votos para quem for o candidato do governo – e ameaçando o país com a ruína se o eleitorado cometer a estupidez de preferir um outro nome. Mas ele diz que está "inspecionando obras". (Já da inspeção que a lei manda fazer, a dos tribunais de contas, o presidente vive reclamando.) E os comícios, com ônibus fretado, despesa paga pelo Erário e sorteio de casas entre a plateia? "Qualquer reunião com mais de três pessoas já é comício", diz Lula. Ou seja: o que é que se vai fazer? Afinal, o presidente da República não pode ficar trancado em casa. Se acham que é comício quando ele discursa em lugares onde há gente reunida, paciência. Quanto aos votos que pede para a ministra Dilma, nenhum problema. O presidente diz que está apenas elogiando uma grande servidora do governo – e apenas dando a opinião de que ela seria um colosso como sua sucessora. Que mal haveria nisso?

A ministra Dilma, por sua vez, faz rigorosamente tudo o que os coordenadores de campanha prescrevem para um candidato. Há tempos deixou de comparecer com regularidade ao seu local de trabalho e passou a correr de um lado para outro atrás de votos, seja em shows de música popular com o cantor Dominguinhos, seja em "fiscalização de obras" nas margens do Rio São Francisco; há pouco foi vista inaugurando um estádio de futebol em Araraquara. O que isso tudo teria a ver com as funções que é paga para exercer na Casa Civil? Do lado da oposição, a peça de teatro é estrelada pelo governador José Serra, que quer a Presidência tanto quanto qualquer um dos seus adversários, mas diz que só vai tocar no assunto no ano que vem. Serra não pode fazer campanha aberta como Lula faz; tem de se contentar com os limites impostos pelo seu cargo. Carrega a mão, por exemplo, na propaganda oficial; a última, no gênero, é a decisão da Assembleia Legislativa que autoriza o governo a fazer publicidade de suas obras em outros estados, para "promover o turismo" em São Paulo.

Registre-se, enfim, a notável contribuição do deputado Ciro Gomes, que recentemente passou a ter seu domicílio eleitoral em São Paulo, para manter aberta a possibilidade de candidatar-se ao governo paulista. Mas o deputado não mora em São Paulo; só a Justiça Eleitoral acredita nisso. Tudo o que fez foi passar quatro horas na cidade, no começo de outubro, apresentar um endereço de fantasia e assinar um papel num cartório garantindo que reside ali. Um cidadão "comum", como diria o presidente Lula, não pode ter um domicílio falso; aliás, vive tendo de provar onde mora com contas de luz, correspondência de bancos ou carnês de crediário, e se der um endereço que não é realmente o seu vai, com certeza, arrumar complicação. Já para ser candidato a presidente da República ou governador do estado não há problema nenhum.

Não se sabe, é claro, quem vai ganhar as eleições de 2010. Mas a verdade, desde já, está levando uma surra.

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