domingo, outubro 18, 2009

GAUDÊNCIO TORQUATO

Uma arena de raposas

O ESTADO DE SÃO PAULO - 18/10/09


No pátio da Igreja do Bonfim, vestida de branco, como manda o Candomblé, numa sexta-feira consagrada a Oxalá, a ministra Dilma Rousseff foi cercada por mães, filhas e filhos de santo, antes de entrar no templo para assistir à missa. Impregnando-se do sincretismo religioso da Bahia, agradeceu ao Senhor do Bonfim a cura do câncer linfático, recebeu abraços e bilhetes com pedidos pessoais, tomou um banho de folhas, beijou a imagem do santo e ganhou vivas do padre. Em Aparecida, o governador José Serra, do púlpito da catedral, pregou sobre o futuro de amor, paz, justiça e solidariedade, dizendo que o Brasil precisa de governantes íntegros, "que sirvam ao povo, em vez de se servirem do povo". Em Belém, às vésperas do Círio de Nazaré, evento que reuniu cerca de 2 milhões de pessoas, Ciro Gomes desancou a era FHC, detendo-se na figura de Serra, que considera "ameaça para o Brasil". Exageros à parte, as performances dos três pré-candidatos à Presidência, nos últimos dias, constituem um ensaio da semântica e da estética a que seremos submetidos em 2010.

Não se quer dizer que a peregrinação pelos templos será destaque na agenda que os contendores começam a cumprir, mesmo sabendo que o único nome já definido como candidato é o da evangélica Marina Silva, cujos hábitos parecem cultivar reserva quanto ao uso da palavra diante de multidões acesas pela chama da fé. Por ocasião das preces dos seus prováveis rivais, a senadora recebia um prêmio internacional pela militância ambientalista, tema que deve ser o norte de sua campanha. É correto, porém, supor que - sejam quais forem os candidatos - igrejas, templos e fiéis deverão figurar na estética eleitoral, seja para arrefecer a contundência dos atores, seja para agarrar o voto fechado de eleitores que escolhem por afinidade religiosa. Se a movimentação pré-eleitoral já começou, haja vista o empenho de possíveis candidatos, começam a aflorar dúvidas, dentre as quais algumas despertam atenção: qual será o diferencial entre os candidatos? Biografias serão elemento de diferenciação? Estilos pessoais estarão em jogo? É pouco para ganhar campanha. O eleitor quer saber o que pensam.

Se o ponto de partida para avaliar cada um for sua origem política, pode-se dizer que Serra e Dilma, por terem enveredado pela esquerda e sido perseguidos pela ditadura, conservam certo parentesco na linhagem ideológica. O governador foi do PMDB, antes de participar da criação do PSDB, e a ministra atravessou o PDT, experimentando o socialismo moreno de Leonel Brizola, antes de chegar ao PT, partido que, na composição original, tinha exércitos de militantes de tradição bolchevique, sindicalistas, intelectuais e comunidades eclesiais de base. Já o PSDB reparte, hoje, com outras siglas o escopo social-democrata que inspirou sua criação. O PSB, pela formação esdrúxula - Luiza Erundina, de um lado, o presidente da Fiesp, Paulo Skaf, de outro, e Ciro Gomes no meio -, terá dificuldades de explicar a via socialista. Na verdade, a cor mais nítida é mesmo o verde do PV de Marina, cujo escopo é a sustentabilidade ambiental, politicamente correto e sem o verniz radical que matizou as siglas antes da queda do último bastião da guerra fria, o Muro de Berlim, em 8 de novembro de 1989.

O arco ideológico poderá ser manipulado pelo PT e adjacências para distinguir a concepção de Estado da era Lula da da era FHC. Sua campanha deverá bater na tecla de um "projeto desenvolvimentista e social" contra o "ideário neoliberal e o apetite privatista" do tucanato. Sinal disso é o esforço do petismo para desprivatizar a mineradora Vale, a segunda maior empresa brasileira, usando para tanto o controle sobre os fundos de pensão. Dilma segurará a língua para evitar que seu pensamento amedronte classes médias e parcelas de setores produtivos. Se o confronto trilhar essa linha, a campanha tucana poderá acusar "o modo petista de governar", enxergando nele o resgate do patrimonialismo, além da tentativa do petismo de entronizar uma nova classe na máquina estatal. Referência disso seria a República sindicalista, comandada pelas centrais sindicais. A bagunça do MST também pode aparecer em pano de fundo. Como se aduz, o modelo de gestão daria munição à oposição para esgarçar o cenário confortável que será desenhado pela situação, com destaque para os seguintes elementos: política econômica e fiscal austera, o "maior programa de distribuição de renda e riquezas de todos os tempos", liquidação da dívida externa, inflação baixa e juros de um dígito, impulso aos movimentos sociais, alta credibilidade externa, programa pulverizado de obras, avaliação positiva do mandatário, etc.

No meio de campo, a bola será dividida entre questões pontuais, como visões sobre matéria econômica (políticas monetária e fiscal); reformas nos campos político, previdenciário e tributário; defesa da rede social e/ou forma de torná-la mais forte. Se for candidato, Ciro Gomes tentará quebrar a polarização entre PT e PSDB. Terá pouco tempo para isso. A forma de fazê-lo é atirar para todos os lados, arte em que é mestre. A munição provém de um ideário genérico, no qual entram coisas do tipo corrida para tirar o País do atraso tecnológico; expandir a poupança interna; investir pesadamente em educação; "integrar Estado, iniciativa privada e academia, em arranjos políticos sem preconceitos e caricaturas do passado". E Aécio Neves? Se entrar no páreo no lugar de Serra, Ciro garante que desiste. Nesse painel, Marina Silva, pela defesa do meio ambiente, deverá ser a mais diferente, seja pela rusticidade da feição amazônica, seja pela expressão suave e com sabor de floresta. Há quem aposte em alavancas de apoio, como o filme Lula, o Filho do Brasil, de Luiz Carlos Barreto, a ser visto por milhões, que, ao produzir cascatas de emoção, funcionaria como ímã eleitoral. Balela. Não dará liga. Luiz Inácio já tentou seguidas vezes passar seu carisma para outros. Que ficaram a ver navios.

No mais, é esperar por uma arena sem leões furiosos, mas com raposas matreiras.

*Gaudêncio Torquato, jornalista, é professor titular da USP e consultor político

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