sexta-feira, outubro 23, 2009

DIONISIO DIAS CARNEIRO

Eternizando o absurdo

O Estado de S. Paulo - 23/10/2009


Um dos problemas da atual recuperação é que ela se dá sem que tenham sido eliminadas as anomalias que deram início à crise mundial. O título deste artigo se inspira em uma frase de Goethe, em seu diário de viagem à Itália: "? aqui em Roma, ? onde o poder e o dinheiro eternizaram tanto absurdo." Extasiado pela beleza da arte romana e pelo longo período em que floresceu - em meio à decadência de costumes e à ruína de valores -, o escritor alemão sublinha o contraste entre arte e destruição, associando-as aos excessos de riqueza e de poder.

Esses elementos estão presentes nas patologias que a crise não foi suficiente para remover.

Há suficiente entendimento de que o aumento exagerado da demanda por ativos, que levou os preços dos mesmos a ultrapassarem os valores realistas, teve sua origem em duas falhas de gestão pública. Políticas monetárias expansionistas para prevenir quedas prolongadas de preços e políticas regulatórias fracas estimularam uma alavancagem excessiva das instituições financeiras. Encorajados pelo manejo das expectativas, que permitiam ajustes finos nas taxas de juros sem perturbar o crescimento, os banqueiros centrais ofereciam um seguro implícito contra a alta turbulência que estimulou a ousadia com o dinheiro alheio. A crença na capacidade autorreguladora dos mercados financeiros abriu espaço para que técnicas financeiras mal compreendidas pelos seus usuários dessem aos aplicadores uma falsa medida de segurança; aos devedores, a certeza de que não faltaria liquidez para seus projetos; e aos bancos, a confiança para vender ou estocar produtos de alta periculosidade. Parecia não haver limites para o crescimento da atividade bancária, dado o potencial global para a expansão da oferta de crédito.

Os desequilíbrios internos dos EUA, que provocaram a expansão da dívida da principal economia do mundo, não serão corrigidos no mandato de Obama. Forçam os limites da confiança no dólar, que nada mais é do que a confiança na capacidade de auto-correção da economia mais flexível do mundo. A combinação única de flexibilidade de preços relativos, governança monetário-fiscal e boa supervisão financeira colocava o dólar acima de qualquer desafio. Hoje, causa insegurança econômica para a economia global. Como emissores de moeda internacional de reserva, os EUA precisavam pagar pouco aos que financiavam sua dívida pública, pois estes buscavam, antes de mais nada, segurança. Em paralelo, o capital deixado sob a guarda dos gestores abrigados pela previsibilidade da economia americana podia render altas taxas. Por muito tempo os economistas podiam atribuir as altas remunerações do capital à eficiência na sua alocação. Os gestores se convenceram de que conseguiam medir bem os riscos e, assim, adequá-los ao apetite de cada classe de investidor. Esse engano produziu a abundância de financiamento barato - que multiplica a riqueza e o poder -, mas parecia eternizar, na expressão de Goethe, absurdos.

Infelizmente, dois anos depois de haver estourado a bolha de financiamento imobiliária poucos desses absurdos foram corrigidos. Restaurada a sua rentabilidade e livres dos prejuízos associados aos erros anteriores, os bancos desejam funcionar sob as mesmas regras de antes da crise. Isso tem gerado incômodo na opinião pública, mas influenciará pouco a reforma regulatória. Tudo se passa como se os lucros dos bancos não tivessem nada que ver com a enxurrada de dinheiro público. Os governos emitem dívida para absorver passivos impagáveis. Os déficits fiscais aumentam por causa das novas despesas com a saúde do sistema financeiro. Nos EUA o presidente tem dificuldade para mediar os conflitos entre os que cobram a necessidade de coerência fiscal em meio a escolhas cruéis: as despesas de guerra, a universalização do acesso ao sistema de saúde e a guarda dos ativos tóxicos dos bancos. O resultado é o risco de um deslizamento não controlado do dólar.

O Brasil se beneficia da recuperação do comércio e da confiança dos investidores, que voltam a buscar maiores rentabilidades. Vale aqui um conselho citado por Goethe: "Em Roma, devemos procurar todas as coisas com fleuma, senão nos tomam por um francês." Não nos devem surpreender os absurdos que começam a surgir no front doméstico. A abundância de financiamento pode produzir riquezas e certamente aumenta o poder dos governantes para explorar as fronteiras da imprudência. Sem cuidado, podem nos tomar por venezuelanos.


Dionísio Dias Carneiro, economista, é diretor da Galanto Consultoria e do Iepe/CdG

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