sexta-feira, setembro 04, 2009

ROBERTO LUIS TROSTER

Mi querida Argentina


Valor Econômico - 04/09/2009

A Argentina vive momento tão ruim que o Papa Bento XVI disse recentemente que: "a pobreza na Argentina é um escândalo"

Era uma vez um país. Tinha e ainda tem tudo para se desenvolver: terras férteis, minérios, água abundante, fontes de energia, infra-estrutura industrial, bons vizinhos e capital humano. Tem destaques em todas as áreas do saber, alguns com reconhecimento internacional como quatro prêmios Nobel e autores traduzidos ao português. Um gênero publicado é o realismo fantástico, que mostra o absurdo como algo comum e crível.

Paradoxalmente, a realidade atual da Argentina supera a imaginação de seus escritores mais criativos. A cada dia que passa, mais um passo em direção ao desastre. Poder-se-iam escrever livros sobre o desmantelamento de seu futuro e as explicações absurdas. O trágico é que a trama é real e atual. Tudo começou há dois anos, com o que parecia ser a saída de uma crise.

Cristina Fernández de Kirchner assumiu em dezembro de 2007 com credenciais e condições de fazer acontecer. Era uma política conhecida nacionalmente, antes do marido ser candidato a presidente, e fez parte da geração que derrubou o governo militar em 1973, protestou no interregno populista e combateu a ditadura militar que se instalou em março de 1976 onde alguns lutaram até a morte por uma Argentina desenvolvida.

Foi eleita com amplo apoio popular e obteve maioria nas duas câmaras e nos governos provinciais. O país estava crescendo 8% ao ano com reservas folgadas, superávits fiscal e externo e havia a necessidade de correção de rota na condução da economia. Seus desafios eram três: normalizar o relacionamento com as finanças globais; manter o crescimento com investimentos e melhorar a inclusão social; enfim colocar racionalidade na política econômica vigente. Falhou. A bem da verdade, retrocedeu e o que poderia ser o fim de uma crise, se transformou no início de outra.

O default argentino não foi bem recebido no mundo bancário, mas foi visto como mandatório, o país estava num beco sem saída. A troca de papéis antigos por novos foi feita e era esperada uma regularização gradual das relações com o resto do mundo. A melhora nos termos de troca deu a folga de recursos que permitiria uma aproximação da comunidade financeira internacional. A atuação foi diametralmente oposta. O resultado é que os investimentos e empréstimos externos não retornaram e é um dos poucos países com fuga de capitais na atualidade. É difícil de acreditar que esteja acontecendo, considerando seu potencial.

A política econômica populista e míope está encolhendo seu futuro. Um exemplo emblemático é o tratamento dado à agropecuária, que foi um dos propulsores do crescimento na última década; a fertilidade natural dos pampas combinada com as novas tecnologias biológicas e empresariais elevaram sua produtividade a patamares inimagináveis. A atitude do governo foi de matar a galinha dos ovos de ouro com impostos escorchantes e restrições de acesso a mercados. Por primeira vez na história, a Argentina deve importar carne e trigo para consumo interno no ano que vem. A justificativa do governo é a de que combate as oligarquias e os latifúndios, um discurso da década de 1940.

Em outros setores o padrão é parecido: ausência de reformas, aumento da carga tributária e da burocracia. O ambiente macroeconômico se deteriorou rapidamente com a inflação acelerando, gastos públicos crescendo a taxas maiores que as receitas e dólar e desemprego subindo. A solução foi a tentativa de tabelamento de preços, o congelamento de tarifas com subsídios e a intervenção no Indec (o equivalente ao IBGE) acompanhada de denúncias de manipulação de estatísticas. Com números oficiais de crescimento e inflação melhores e credibilidade menor, a tensão com o setor produtivo aumentou e a popularidade do governo despencou.

Nas eleições legislativas de junho último, apenas 30% dos votos foram para candidatos governistas e o índice atual de rejeição à presidenta é de 50%. Surpreendentemente, sua reação foi de acelerar na direção errada. Já que falta pão, investe-se no circo. Com um discurso de que alguns empresários "seqüestram gols" (fazendo um paralelo com a ditadura militar), cancelou os contratos de transmissão de jogos em TV a cabo e fez um patrocínio equivalente a R$ 300 milhões por ano, para que as partidas de futebol sejam transmitidas pelos canais abertos. Mais déficit para gastos que não vão fazer sua popularidade crescer.

A lista de exemplos de falta de racionalidade é extensa. Estatizou-se a Aerolineas Argentinas que tinha um prejuízo diário de menos de R$ 2 milhões, hoje já está em R$ 5 milhões por dia; os que não voam pagam impostos para os passageiros. Tributa-se o jogo em 15% e a agropecuária em até 35%. Estatizou-se a previdência privada com o discurso de proteção a seus mutuários sem um cálculo atuarial e apropriando-se dos fundos agora e repassando os custos para os próximos governos. Resumindo, a economia está em rota de colisão. Já se fala na possibilidade de um novo default. Algo inimaginável há pouco tempo.

É um populismo tão míope que a situação dos pobres piorou. O Papa Bento XVI disse recentemente que: "a pobreza na Argentina é um escândalo". Não se sabe qual é o grau, pois os números do Indec falam em 15% e os da UCA em 39% da população nessa situação. A única certeza é que o casal Kirchner não corre o risco de ser incluído nessa estatística, pois seu patrimônio pessoal aumentou e bem. Não houve falta de racionalidade na condução dos negócios familiares. O ponto é que a verdadeira crise do país fica mais nítida a cada dia.

Se a notícia é ruim, mata-se o mensageiro. Este é o espírito do projeto da lei de radiodifusão que está sendo apresentado no congresso esta semana. A lei limita o número de canais que uma empresa pode ter, determina que apenas um terço seja de empresas privadas e impõe a renovação da licença a cada dois anos (leia-se uma ameaça permanente à liberdade de expressão). A justificativa é a necessidade de desmonopolizar o setor e em memória de 118 jornalistas desaparecidos.

Falta o projeto mais importante, o da Argentina sonhada na virada da década de 1970 também dedicado aos mesmos 118 desaparecidos, bem como aos demais que morreram, às dezenas de milhares que emigraram e aos milhões que moram lá. Um projeto ambicioso, consistente com o potencial de seu país e seu povo. As condições para um final feliz existem.

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