quinta-feira, abril 23, 2009

BRASIL S.A

Atraso mental


Correio Braziliense - 23/04/2009
 

O mundo está em crise, transformações profundas já moldam o que virá, e o Congresso afundado

Cansaço, preguiça, revolta, senso de impotência. Os rotineiros escândalos de Brasília, agora envolvendo o Congresso, como antes envolveram o governo, o Judiciário, lá atrás o próprio Congresso, repetindo-se em movimentos circulares tão certos como as estações do ano, de tão frequentes entorpeceram os sentimentos. 

Valores de ética e de moral ficaram relativos na administração do Estado em todas suas dimensões, da federal à municipal, na divisão dos poderes, na representação política eleita para supervisioná-las. Delas não há exemplos de grandeza para a nação se espelhar. 

Nem sempre foi assim. E é da perspectiva de que a dissolução dos valores máximos é coisa recente que se deve refletir sobre os atos reveladores da moral republicana atual, como o uso despudorado de passagens aéreas pelos parlamentares. Elas são um subsídio para o deslocamento do parlamentar de Brasília para casa. Nada mais. 

Tornaram-se um salário indireto, usadas para viagens ao exterior de parentes, de amigos e correligionários, até vendidas. Deputados alegaram que são de seu uso exclusivo, portanto, discricionário. Partidos entenderam como suas. É o que se deduz de nota do Psol ao falar em “passagem da cota legal do partido na Câmara.” 

Nada disso é verdadeiro. A cota é do parlamentar, e não é legado, como arguiram deputados licenciados lotados como ministro ou ex no Tribunal de Contas, que continuaram servindo-se do suposto direito só agora regulado e sustado pela direção da Câmara. 

O escândalo não é tanto a apropriação privada de valores públicos e sim algo mais grave: a perda de noção da vergonha. Isso é novo. A explicação típica recorre à suposta ignorância sobre o certo e o errado, coisa improvável, mas, se verdadeira, mais preocupante, já que reveladora da falência do espírito público. 

Hipótese assustadora, embora crível, dada a abrangência da farra das passagens: 261 entre 513 deputados, segundo o site Congresso em Foco, as usaram para viagens de recreio ao exterior, faltando os senadores nessa conta. O que se tem é um processo sistemático, não um evento casual, que se repete nas assembleias dos estados e câmaras de vereadores. Deputados de Alagoas, estado paupérrimo, recebem salário de R$ 12,38 mil e “verba indenizatória” de R$ 15 mil ao mês. Vereadores em cidades pequenas ganham até R$ 8 mil/mês por sessões de até três horas, se tanto, duas vezes por semana. 

A exceção banalizada 
O mandato é tomado como um meio de extrair vantagens pessoais e de enriquecimento, não ônus assumido em nome da sociedade. Virou profissão, alpinismo social, arrecadação para partidos que cobram dízimo do parlamentar, como o PT, e o gabinete, cabide de emprego de cabos eleitorais contratados a mando da direção partidária. 

Em quase todas as prebendas anexadas aos salários do parlamentar, que já seria a ajuda de custo, não meio de renda, se acham manchas de conduta, como o auxílio-moradia embolsado até por quem tem casa própria em Brasília. Banalizou-se o que era exceção. 

Ritual do escândalo 
Mais para trás, no entanto, o escândalo tinha liturgia. Havia o pequeno achacador, que se satisfazia com o troco da “camaradagem”, por assim dizer, a outra ponta do tal “jeitinho” dos brasileiros, e o gangster de alto coturno — servindo-se desse termo em desuso mais apropriado ao doutor de araques tratado como excelência, um epíteto que jamais dispensava, nem ao ser apanhado no ilícito. O desvio incorria o transgressor, se não à cadeia, rara ontem e hoje para tais delitos, a sanções sociais. Agora, promove o infrator. 

O amanhã não existe 
O transgressor de fraque, como se dizia, conta vantagens meio em público, certo da impunidade, mas alega inocência, embora prefira não pô-la em exame. Sabe como é: melhor não arriscar. A narrativa do neoespertalhão junta categorias de fácil compreensão e capazes de chamar simpatias: a ingenuidade dos simplórios, hoje uniforme do político-padrão, com o de vítima de preconceito “das elites” — branca, acrescentariam os mais ousados, e paulista, dependendo da gravidade. E, se o currículo do velhaco permitir, de perseguição ideológica, recurso eficaz para atrair incautos de boa-fé. 

O mundo está em crise, transformações profundas já moldam o que virá, e o Brasil discutindo miudezas. Sequelas da indigência dos responsáveis pelo Estado, a elite verdadeira, diante de questões reais exigidas pelos novos tempos. É como se não houvesse amanhã. 

Sabão em boca-livre 
O Congresso começa a reagir, disciplinando as benesses e impondo limites, mas também testa reações sobre um aumento de salário dos parlamentares, de modo a incorporar o que provocou espécie. Ainda que questionável, ao menos submeteria tais rendimentos à parte à tributação pelo Imposto de Renda. É bom que reajam, pois como vão os políticos acabarão como Geni. No fim de semana, um grupo deles levou um sabão de uma empresária durante evento social-empresarial num resort de Comandatuba. É o que dá esticar como borracha coisas como a ética: levaram puxão de orelha numa boca-livre disfarçada de fórum de temas nacionais. Antigamente, tomavam mais cuidados.

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