domingo, março 22, 2009

DORA KRAMER

De chips e outras bossas


O Estado de São Paulo


O Tribunal Superior Eleitoral (TSE) concluiu um projeto de aperfeiçoamento do sistema de votação eletrônica que, segundo o presidente do TSE, ministro Ayres Britto, a partir de 2014 vai permitir ao brasileiro ir às urnas mesmo se estiver fora de seu domicílio eleitoral. Hoje o eleitor é obrigado a justificar a ausência, mas não pode ter seu voto contabilizado.

“É espetacular. É uma revolução”, comemorou o ministro Ayres Britto, entusiasmado com a nova sistemática de cartões eletrônicos com chips e outras bossas.

Todas novíssimas, à altura do avançado sistema de votação brasileiro, reconhecidamente um dos mais, se não o mais, modernos do mundo.

Em contrapartida, o Brasil é um dos poucos, entre as nações civilizadas, a sustentar a tradição do voto obrigatório. Isso desde 1932, há 77 anos, portanto. Não obstante a longevidade do sistema, as mudanças ocorridas principalmente nos últimos anos e o consenso em torno da necessidade de uma reforma político-eleitoral, o voto facultativo é um tema interditado do debate.

Pouco se fala no assunto e, quando se levanta a hipótese de liberação do eleitor para decidir se quer ou não votar, o mundo desaba em argumentos segundo os quais o Brasil – e o brasileiro, portanto – ainda não está preparado para fazer a opção entre comparecer ou não comparecer às urnas.

O que é um direito na Europa, na América do Norte (à exceção do México), na maior parte da América Central e em 205 nações do planeta, no Brasil e em outros 23 países (a maioria da América do Sul) é uma obrigação, passível de penalidades. Insignificantes na forma, mas desconfortáveis no conteúdo, principalmente pelo caráter impositivo a um ato que resulta numa escolha.

Por conta de um acordo tácito firmado sabe-se lá onde ou quando, a tese é intocável. Foi rechaçada durante a Constituinte por parlamentares de todos os matizes ideológicos e não encontra porta-vozes dispostos a levantá-la, ainda que como hipótese de consulta popular para conferir se o eleitor está satisfeito com o sistema atual ou se gostaria de mudar.

Um dos poucos defensores de peso era justamente o ministro Ayres Britto, entusiasta da modernização do sistema de votação, que, no entanto, mudou de opinião depois das eleições municipais do ano passado. Em outubro de 2008, o ministro entendia que brevemente o Brasil teria “um encontro marcado” com o voto facultativo.

“Entendo que a legislação consagrará, como em outros países, a voluntariedade do voto”, que, argumentava ele, dá ao eleitor a possibilidade de se engajar no processo eleitoral “com mais conhecimento de causa e determinação”.

Em janeiro de 2009, passou a defender o oposto. “A eleição é tanto mais participativa quanto obrigatório o voto. O voto facultativo significaria uma desmobilização física, provavelmente com maior repercussão nos setores economicamente mais necessitados e com menos educação formal.” Os pobres, bem entendido.

A razão da mudança? A de sempre: o Brasil precisa de educação política e uma das formas mais eficientes de educar o povo é obrigá-lo a votar.

Com cartão eletrônico e chip para reconhecimento digital, mas no cabresto. De pai para filho desde 1932 e até quando a justiça divina decidir que o brasileiro sabe se comportar direitinho e não vai dar vexame na democracia.

À sorrelfa

Aos quase dois meses da mais recente crise, o Senado vai caminhando para debitar suas mazelas na conta dos funcionários. Desde a negociação da “trégua” entre PT e PMDB, a questão passou a ser tratada como se as irregularidades fossem meramente funcionais, quando a disfunção ali é atinente ao decoro parlamentar, ao desrespeito à Constituição, à cultura do privilégio.

“Precisamos enxugar essa máquina”, alardeou o primeiro-secretário, Heráclito Fortes, que nos últimos dias assumiu o problema, permitindo ao presidente José Sarney um distanciamento estratégico do desgaste.

Fez um carnaval com a demissão de 50 diretores. Divulgou os nomes, ironizou a existência de diretorias bizarras, humilhou publicamente quem pediu para ficar, mandou recolher os carros oficiais aos costumes, falou como se o problema fosse da responsabilidade dos servidores e não primordialmente da alçada dos senadores.

Prometeu mais na semana que vem. Do mesmo, naturalmente.

O foco foi desviado para o lado administrativo. Assim, não se toca nos pecados dos parlamentares, não se responsabilizam aqueles que tomam as decisões e permitem que o Legislativo seja uma instituição onde o privilégio é a lei.

Há as diretorias absurdas, há os diretores sem compostura, há os passageiros de trens da alegria, há quem receba horas extras indevidas, há quem pinte e borde, mas nada – ou muito menos – disso haveria se suas excelências não autorizassem as práticas e não compartilhassem dos abusos.

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