sábado, dezembro 13, 2008

ROBERTO POMPEU DE TOLEDO


REVISTA VEJA
À moda antiga

"Enfim, um jogador sem a compulsão de sair do Brasil ou de mudar de time. Rogério Ceni confere ao São Paulo um lastro que está na base de sua hegemonia no futebol"

Fala-se que o São Paulo, entre os clubes brasileiros de futebol, é o mais bem administrado, o que mais atenção devota ao planejamento e o que oferece melhor estrutura aos jogadores. Deve ser verdade. Mas, mais que isso, as vitórias que se acumulam, nestes últimos anos, culminando com a conquista do Campeonato Brasileiro pela terceira vez consecutiva, devem-se, na opinião do colunista que vos fala, a uma única, singular e indivisível pessoa: o goleiro Rogério Ceni. Com sua competência, liderança e dedicação ao clube, ele é o retrato deste vitorioso São Paulo. Mas, sobretudo, Rogério personifica uma resistência solitária e heróica a um estado de coisas que empobrece e apequena o futebol brasileiro.

O fato de tal papel ser exercido por um goleiro já é, em si, sintomático da era sombria que vivemos nos gramados. Goleiro é um ser esquisito. Num jogo cuja especificidade é ser jogado com os pés, ele trabalha com as mãos. Num espetáculo em que o que se espera, o tempo todo, é o momento apoteótico do gol, ele está lá para impedi-lo. Não seria certo dizer que pratica o antijogo, porque a expressão está associada ao jogador especializado nas botinadas na canela do adversário. Mas dá para dizer que o que pratica é o contrajogo. Para que isso fique bem claro, usa roupa diferente. Num esporte em que a movimentação e a corrida são a alma do negócio, a ele incumbe ficar parado. Goleiro é um ser tão singular que convida a cismar sobre que estranhos imperativos do destino, ou que especiais características de alma, levariam uma pessoa a abraçar tal ofício.

Ora, direis, Rogério Ceni se distingue por também fazer gols. Com sua habilidade para cobrar faltas e pênaltis, já fez quase 100, um recorde mundial para os de sua posição. Isso é certo, e boa parte de sua mística vem da fama de goleiro-artilheiro. Nem por isso deixa de ser um goleiro. Na maior parte do tempo está parado, entre as traves, com a missão de pegar a bola com a mão. E é muito sintomático, para retomar o fio deste arrazoado, que um goleiro, ou seja, um rebento da família dos praticantes do contrajogo, seja hoje o mais festejado, e talvez o melhor, entre os jogadores em atividade no Brasil. É sintoma de que entre os jogadores de linha, os dribladores, os artistas do passe preciso e da arrancada mortífera em direção ao gol –; personagens que fizeram a glória do futebol brasileiro –; sobra pouca coisa boa, se é que sobra alguma, nos gramados nacionais. Muito cobiçados no mercado internacional, eles vão logo embora.

O futebol brasileiro atual é o reino do volátil e do impermanente. Vá um menino querer montar um álbum de figurinhas. Como, se o time de hoje não será o mesmo do mês que vem? Não pode mais haver álbuns de figurinhas. E como pode haver bom futebol sem álbum de figurinhas? Para esse estado de coisas concorrem o desnível entre os mercados da Europa e do Brasil, uma certa cultura, mais forte a cada ano, de que jogador bom tem de sair do país e, claro, a boa e velha corrupção –; ela não podia faltar, num ramo de atividade movido a tantos milhões de dólares e euros.

Rogério Ceni, contra esse pano de fundo, representa os valores contrários da solidez e da permanência. Ele fez toda a carreira no Brasil. Mais ainda, fez a carreira no São Paulo, onde está há dezoito anos. Em parte tal constância se deve ao fato de ser goleiro, posição cujos expoentes, por brotar mais ou menos por igual em toda parte, não são tão bem cotados no mercado mundial quanto os jogadores de linha que, únicos, brotam no Brasil. Em outra parte se deve às características pessoais de gostar de jogar onde joga e não sofrer da doença do bicho-carpinteiro que não sossega o jogador enquanto não obtém um contrato no exterior.

Rogério forma com seu time um casamento digno dos formados no passado entre Pelé e o Santos, Zico e o Flamengo, Ademir da Guia e o Palmeiras, Nilton Santos e o Botafogo. Esse valor antigo, triunfo do sólido contra o fluido, do fiel contra o inconstante, é a grande contribuição que, ao lado do talento, ele oferece ao São Paulo. Não há empresa, repartição pública, igreja ou trupe de teatro que resista a um entra-e-sai de motel. Time de futebol não haveria de ser exceção. A presença de Rogério no São Paulo confere ao time um lastro de que outros não gozam. É daí que, em boa parte, derivam os títulos.

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